24 de outubro de 2011

DESABAFO - PARTE I - Eduardo Chaves*

Três tragédias pintam o cenário de jovens que passam anos nas salas de aula e não aprendem sequer o básico da educação formal. Por que a sociedade valoriza a escolaridade independentemente da qualidade da aprendizagem?

Este artigo é um desabafo. Um desabafo a propósito de um vídeo de um rapaz português de 15 anos, prestes a completar 16, chamado Marco, que vi no YouTube. O vídeo me foi recomendado por um amigo meu, de Odivelas, perto de Lisboa. Fiquei revoltado com o que vi – e com o que não vi, mas sei que existe. Por isso o desabafo.

O que me revoltou mais foi saber que coisas assim acontecem também aqui no Brasil, em números absolutos bem maiores e, talvez, em números percentuais ainda superiores aos de Portugal: jovens que chegam aos 15 ou 16 anos totalmente analfabetos (e não só analfabetos funcionais), apesar de haverem frequentado a escola desde os sete anos, ou seja, ao longo de pelo menos oito anos.

A imprensa brasileira de vez em quando relata fatos semelhantes. No entanto, uma reportagem de jornal ou o resumo comentado de uma pesquisa parece não traduzirem a realidade da tragédia. O relato escrito parece não chocar tanto quanto um vídeo em que esta realidade assume rosto e voz.

Quando a gente assiste ao vídeo que exibe, de forma clara e inequívoca, que oito anos de escolaridade não valeram absolutamente nada para esse rapaz, podemos concluir que alguma coisa está errada, muito errada. Porque durante esse tempo todo ele não aprendeu nada na escola – a ler, a escrever, a dizer a data em que nasceu, tampouco a indicar cidades próximas àquela onde vive.

Como a escolaridade básica é obrigatória em Portugal, mais ou menos como aqui, podemos dizer que os anos passados por Marco na escola simplesmente foram oito anos de vida que ele perdeu: roubaram-lhe esses anos ao obrigá-lo a frequentar uma escola em que ele nada aprendeu.

Na instituição onde estudou, ninguém o acompanhou, ninguém conferiu se ele estava aprendendo algo. Fosse ele deficiente mental, incapaz de aprender o que esperavam que aprendesse, deveria ter sido encaminhado para uma escola especial. Se fosse um caso extremo de deficiência, um menino que não iria aprender nada nem mesmo com a ajuda de profissionais especializados, o sistema educativo deveria ter decidido que ele era 'inescolarizável', requerido a um juiz qualquer que o dispensasse da escola, e enviado-o para casa.

Lá, ele certamente teria sido mais feliz. Teria brincado, uma parte do tempo, ajudado sua família em tarefas simples na outra. Brincando ou trabalhando, quem sabe teria aprendido alguma coisa que lhe interessasse ou lhe fosse útil. Vejam o vídeo e me digam se concordam ou não comigo:


O que dizer de uma tragédia dessas? Por onde começar? Começo ressaltando que, a meu ver, existem pelo menos três tragédias aqui – talvez mais.

Há, primeiro, a tragédia pessoal do rapaz. Ele está evidentemente infeliz, talvez com problemas sérios de aprendizagem. Uma coisa é clara: ele detesta a escola. Fica apenas sentado lá, não aprende nada e ninguém parece se preocupar com isso. Como ele mesmo diz, preferiria trabalhar a estar na escola.

Há, segundo, a tragédia representada pela escola. O que se passa numa escola onde um jovem passa oito anos, sem aprender nada, e ninguém toma uma providência? (Minha mulher, também educadora, levanta a hipótese – mais trágica ainda – de que talvez a professora e a diretora nem estivessem cientes de que o jovem não estava aprendendo nada…). Do ponto de vista da repercussão e do alcance, essa tragédia, em qualquer de suas versões, é maior ainda do que aquela individual, vivida pelo aluno.

E há uma terceira tragédia: a representada por uma sociedade que vê um sistema escolar em que alunos não aprendem nada (ou aprendem muito pouco) e que concorda em mantê-los, inocentes de qualquer crime, institucionalizados, presos na escola, sem poder sair de lá até que tenham cumprido sua sentença.

Repetindo: Marco conseguiu chegar aos 15 ou 16 anos, nos quais frequentou a escola durante oito, sem aprender a ler e escrever, sem ficar sabendo direito quando nasceu, sem conseguir dizer se conhece alguma outra cidade de Portugal (ele diz que conhece um pouco da França, mas fica em dúvida se essa “cidade” está localizada em Portugal). A escola parece concluir que nada tem que ver com isso… E a sociedade não parece concluir que uma injustiça está sendo cometida, porque um menino (depois adolescente) está sendo mantido preso sem ter cometido nenhum crime.

* Eduardo Chaves é PHD em Filosofia, consultor em várias instituições educacionais e colaborador do Blog da Editora Ática.

Leia também:
Desabafo - Parte II - Eduardo Chaves
Desabafo - Parte III - Eduardo Chaves

Extraído de: Blog da Editora Ática