29 de outubro de 2011

DE HENRY FORD A STEVE JOBS - Luiz Ricardo Leitão

Em um filme intitulado A Antiga e a Moderna, de 1923, o comediante Buster Keaton (um dos reis do cinema mudo, ao lado do genial Charlie Chaplin) narra as desventuras amorosas de um reles “plebeu”, sempre preterido pelos pais de sua amada em favor do pretendente mais rico e/ou poderoso. Ingênua e bem-humorada, a trama se passa em três épocas distintas: a Idade da Pedra, o Império Romano e a Era Moderna. A exemplo de Carlitos, que, com o clássico Tempos Modernos (1936), nos desvela a essência do processo de exploração do homem e acumulação de capital no mundo industrializado, Keaton não hesita em qualificar a era moderna como uma etapa vertiginosa e “voraz” da história humana. 

Apesar das diferenças de estilo, os dois atores-cineastas lograram captar o essencial do regime do capital: sua tendência irreversível à concentração e reprodução em ritmo cada vez mais febril e veloz. O velho Karl Marx, lá nos idos do século 19, já nos descrevera sobejamente esse processo, que Lênin também analisou em detalhes nas páginas de Imperialismo: estágio superior do capitalismo. Cada um desses estágios, obviamente, se insere em distintos graus de desenvolvimento das forças produtivas, desde os tempos quase “românticos” da máquina a vapor, até a atual era biocibernética “globalizada”. 

Charlie Chaplin
Keaton e Chaplin, em particular, denunciam as agruras da organização fordista, já agudamente dissecadas por Antonio Gramsci no ensaio “Americanismo e Fordismo” (cf. Maquiavel, a Política e o Estado moderno), em que o pensador italiano aventa a hipótese de o fenômeno ser o “ponto extremo do processo de tentativas sucessivas da indústria para superar a queda tendencial da taxa de lucro”. Suas implicações, porém, transcendiam em muito a esfera meramente econômica da produção de mais-valia, abrangendo ainda aspectos mais subjetivos do amplo processo de enquadramento dos trabalhadores nas pautas de vida ditadas pelo novo padrão de acumulação do capitalismo industrial. O modelo fordista regulava não só o ritmo produtivo, como também se ocupava de ordenar as práticas sociais fora do espaço fabril, estendendo-se até mesmo sobre a rotina doméstica e a vida sexual dos operários. 

Henry Ford
Embora a racionalidade fordista tenha sido superada pelo toyotismo japonês, Henry Ford (1863-1947), o pai da linha de montagem automobilística, repousa hoje no panteão sagrado do capital. Esse parece ser igualmente o destino de Steve Jobs, o fundador da Apple, após sua morte emoldurada pelas cores trágicas de uma doença terminal. Não por acaso, a história de sua vida será lançada já neste mês por Walter Isaacson, o mesmo autor que escreveu uma biografia de Benjamin Franklin e outra de Albert Einstein. Walter sentiu-se à vontade para revestir o “criador” do iPod, o iPhone e o iPad de um tom quase épico, afirmando que a saga (?) de Jobs “é o mito de criação da revolução digital em grande escala”, que começou como um negócio na garagem dos pais e se tornou a empresa mais valiosa do planeta. 

Ninguém ignora os méritos de Jobs na tarefa de reinventar artefatos mais adequados ao ritmo alucinante de vida que a era biocibernética impõe ao cidadão-consumidor globalizado. Contudo, vale a pena lembrar que, tal qual H. Ford, ele foi apenas mais um coadjuvante da máquina que, há mais de 200 anos, em sua esquizofrênica dialética, não para de erguer e destruir coisas belas ou tétricas. O show, por certo, tem de continuar, mesmo que seu roteiro não esteja bem claro: se a sociedade de consumo hipertrofiada engendrou a falaciosa estética da pós-modernidade, de que nos fala o crítico estadunidense Fredric Jameson, o que podemos esperar desse mundo virtual insaciável e fragmentado? 

Steve Jobs
A morte de Jobs representou, sem dúvida, um evento midiático – e um artifício ideológico – de grande impacto. Mas ela é incapaz de atenuar a acirrada competição entre as corporações de informática ou, sobretudo, diluir o imenso custo social exigido pela expansão do setor. Por fim, o cronista pergunta: será que o biógrafo nos contará algo sobre a fábrica de componentes da Apple em Taiwan, em cuja torre se registra o maior número de suicídios de operários do país? O “detalhe”, estou certo, nem será digno de nota. Afinal, como dizem na língua da matriz, the show must go on – ou seja, o capital não pode parar...

* Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.

Extraído do sítio do Brasil de Fato