13 de novembro de 2011

ALEGRE BAHIA TRISTE - Eduardo Calazans

Triste Bahia, ó quão dessemelhante!
Inspirado numa foto (ao lado) de Rejane Carneiro publicada no jornal A Tarde.

Meio-dia a pino, o trânsito a passos de cágado pela orla em plena segunda-feira gorda, dia do batente, dia de branco como se diz aqui na Bahia, e o buzu no engarrafamento mais parecia um forno de padaria. Apesar do sufoco, estava eu sentado no banco junto à janela, de maneira que me sentia um privilegiado. Qual não foi minha surpresa, de repente, todos os passageiros que estavam em pé, debruçaram-se às janelas, disputando cada fresta em direção à praia de Piatã. 

Espremido, por entre sovacos, peitos, bundas e outras estrovengas mais, aos trancos e barrancos, não me fiz de rogado, tratei de corujar o acontecido. Consegui, com muito esforço, uma nesga por onde olhei a cena. Lá estava na areia da praia o cadáver inchado de um afogado e algumas pessoas próximas ao corpo, jogando frescobol, outras fazendo “cooper” à beira-mar (nem se dignavam a olhar, não sei se por repulsa ou indiferença mesmo), crianças brincando de castelos de areia, uns malhados jogando footvoley e numa mesa da barraca de praia, um rapaz tocava violão com os amigos. Dentro do buzu, uma enorme algazarra, parecia uma festa: uns diziam que aquilo devia ser cachaça; outros faziam piadas; alguns aproveitavam para fazer “terra” nas mulheres. Um senhor amassado ao meu lado disse com dificuldade que aquilo era coisa de gringo burro, um evangélico enfurecido aproveitou para falar que uma vida em pecado sempre acaba no “fogodosinferno”, alguns marmanjos ao fundo começaram a batucar e a cantar um pagode: “Morreu, morreu/Antes ele do que eu/ Morreu, morreu/Antes ele do que eu/ E vai descendo/ E vai descendo, pai/ E vai subindo/ e vai subindo, mãe... e o crente esbravejando: “Para o quintodosinfernos”...

Tentei imaginar o que se passava na cabeça daquelas pessoas da praia e não conseguia entender, provavelmente, elas estariam esperando os jornalistas. A televisão? A foto? Uma foto bonita na praia, com coqueiros e mar ao fundo? Um belo close, uma esplêndida panorâmica? Um belíssimo espetáculo? 

No buzu, não, as pessoas estavam calejadas com a brutalidade do cotidiano, pareciam gostar até, adoravam ler as páginas policiais dos jornais, vibravam até, não perdiam um programa sensacionalista, desses que jorra sangue por todos os cantos. Qual a canção estaria tocando o rapaz ao violão? Uma canção romântica? Um pagode tão em moda? Sair no noticiário seria esse o intento dos insensatos? Não teriam visto a cena? Ou a ficção, agora, comove mais do que a realidade? Como conseguiam se divertir, com tamanha naturalidade diante de um quadro tão macabro? A morte já não tem importância? Tudo agora é motivo de festa e comemoração? Os da praia pareciam ser pessoas bem criadas, deviam ser bem postas na vida para estarem na praia num dia comum de semana, de um mês de trabalho. “Dia de Branco”, como se diz aqui na Bahia. Talvez eles tivessem visto toda a cena do afogamento e já estivessem fartos. Não havia aglomeração, nenhum curioso por perto, ninguém parecia se incomodar, pareciam não querer perder nem um só minuto de sol. Aquelas pessoas não tinham filhos, pais, mães, irmãos? Não tinham sensibilidade? Seriam hedonistas no mais alto grau do termo? E a solidariedade? Será que eles não tinham visto o acontecido? Não acreditavam no que viam? A ficção misturava-se à realidade? A notícia seria mais verdadeira do que o fato? Não tinham amigos? Eram sós no mundo? Cada um em seu mundo? Nenhum comentário, nenhum esboço de sentimento? Estamos tão insensíveis a esse ponto? Talvez achassem aquilo ali na praia, normal, ninguém parecia se sensibilizar com a cena. Não havia cena, não havia drama, talvez eu estivesse exagerando, diriam eles. O motorista arrastou o carro, causando uma enorme balbúrdia. Tinha horário a cumprir. E lá se foi o buzu entre protestos, deboches e xingamentos. Adiante muitos saltaram lépidos e fagueiros, felizes da vida.

Refeito, respirei fundo, ainda comovido com a cena da praia. 

E em cada ponto a seguir entrava e desfilava pelo Buzu, um esmoler, um vendedor, um doente, um miserável, e os poucos passageiros sentados que restavam, todos com os olhos voltados para fora do coletivo, a procura de alguma coisa diferente, alheios à realidade.

Bem-aventurados sejam todos aqueles que ainda conseguem se indignar! Lembrei-me do evangélico. Já no finalzinho da viagem, ainda, ouvi os lamentos de uma senhora com elefantíase, afligi-me com uma outra mulher, grávida, com um bebê no colo equilibrando-se por entre as ferragens do buzu em ziguezague, logo, atrás dela, um rapaz pedia dinheiro para comprar remédios para a AIDS e um senhor a me mostrar a sua bolsa de colostomia, pedindo pelo amor de Deus. Dividi com os quatro as parcas moedas que dispunha, enquanto, um Hare-Krisna me oferecia balas de gengibre e incenso indiano, solicitei a parada ao motorista que atendeu com um sorriso maroto, parando depois do ponto. Será que estamos caminhando para a total insensibilidade, a total estupidez? Parece que tudo agora é feito para que se enlouqueça, saltei do Buzu com uma vontade imensa de andar sem olhar para a praia.



Extraído do sítio Comédias Baianas