19 de novembro de 2011

DA BELLE ÉPOQUE À ERA DOS JAZZ (Cont. II) - Arthur de Faria

É nos anos 1910 que volta à cidade o porto-alegrense Arthur Elsner. Cego desde o nascimento, em 24 de junho de 1899, Arthur tinha ido para o Rio de Janeiro aos 8 anos de idade, estudar no Instituto Benjamin Constant. Lá, se alfabetizaria em letras e partituras e se especializaria em piano, tudo pelo sistema Braile. Quando se formou, tinha pouco mais de 15 anos mas era uma das estrelas da banda da escola, tocando piano e acordeom.

A estes instrumentos, somaria, em 1923, uma curiosidade importada por ele em primeira mão. Era o drums, estranha engenhoca inventada pelas jazz-bands americanas, e que soava como o último grito no mundo da música popular. Nenhum gaúcho – e pouquíssimos brasileiros – tinha visto um negócio daqueles antes.

Primeiras baterias. Foto: reprodução.
O primeiro exemplar havia aportado em terras brasileiras apenas quatro anos antes, tocado pelos americanos da Harry Kosarin Jazz Band, que fizeram uma turnê por Rio e São Paulo para apresentar o novo ritmo do jazz para as embasbacadas plateias nacionais. O tal drums não tinha só drums (tambores), mas também um caótico e barulhento amontoado de pratos, ferragens, blocos de madeira e até sinos de vaca!

O curioso é que, a partir do momento em que é incorporado à música brasileira, poderia ter se chamado, sei lá, drúmis - afinal, saxophone virou saxofone, trumpet virou trompete e por aí vai. Mas o drums teria nomes nacionais totalmente diferentes do que lhe deram seus inventores. Duas variantes, ambas elucidativas do conceito inicial que sua sonoridade causou nos nativos: a primeira, que não pegou, foi pancadaria. A segunda, bateria. E bateria, pra quem não lembra, é o coletivo de… panelas.

Era esse coletivo de panelas que Arthur importou da Áustria. Quebrava o maior galho: em vez de, como se fazia até então, ter um cara pra tocar a caixa, um para o bumbo e outro para os pratos, se colocavam os três instrumentos nas mãos (e pés) do mesmo sujeito. Era o primeiro 3 em 1 da história da música.

A banda de Gordon Stretton foi o
primeiro grupo de jazz a
apresentar-se em Porto Alegre.
Foto: reprodução.
Em Porto Alegre a consagração da novidade se dá no mesmo 1923 em que Arthur importa seu exemplar (há quem fale em 1924). Foi nessa data que a cidade assiste pela primeira vez uma banda de jazz: a Gordon Stretton Jazz Band. O grupo, liderado por um músico negro nascido em Liverpool, na Inglaterra (!!!), estava em turnê pelo País, acompanhando a vedette francesa Mistinguetti. E lá estava, com destaque, ela: a bateria! Uma novidade e tanto.

Voltando a Elsner: ao longo da década de 1920, seu hobby seria inventar instrumentos. Ele, cego, os desenhava minuciosamente e passava o projeto para um marceneiro amigo seu, que os construía. Muitos deles eram dados a tocar por um outro menino-prodígio, chamado Namur Barcellos – que, anos mais tarde, teria o disputado posto de harpista da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Eram coisinhas como um violino de lata, um violoncelo com o corpo feito de caixa de charutos, uma bengala que virava viola, garrafofones, violinos com cornetas, chapéus com sinos e por aí vai. Instrumentos que foram guardados com amor e cuidado por Namur durante toda a sua longa vida e hoje não se sabe onde foram parar.

Arthur comporia também muita música – tanto erudita quanto popular –, mas também quase tudo se perdeu (mas você pode ouvir uma canção dele e de Ney Messias aqui). O que não foi por água abaixo na enchente de 1941, virou fumaça quando incendiaram a Rádio Farroupilha, em protesto contra o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954.

Mas o que mais importa com relação a Elsner é seu talento como um dos (multi-)instrumentistas mais solicitados de seu tempo. Tocou com os maiores músicos e as melhores orquestras da cidade. Num ano podia ser pianista de uma típica de tango, no outro atacar de acordeonista e percussionista da Jazz-Band de Paulo Coelho e, logo ali, gaiteiro de algum regional ou piano solo como titular de um programa na Rádio Gaúcha. Isso quando não fazia tudo isso ao mesmo tempo.

Nunca deu a menor pelota pra sua cegueira. Afinal, ela nem ao menos o impedia de andar sozinho pela cidade, subindo e descendo dos bondes na parada certa, e sem jamais macular seus impecáveis ternos de linho branco. Já entradíssimo na terceira idade, Arthur assume o cargo de diretor da Banda Municipal de Porto Alegre. Mais tarde ainda, chegaria a ser percussionista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a OSPA. Só não me pergunte como é que ele se entendia com o maestro…

Provavelmente graças ao seu lendário ouvido, que lhe permitia hábitos curiosos e feitos que viraram lenda.

Por exemplo: contra a canalha que, nos cabarés, aproveitando-se de sua cegueira, roubava sua cerveja enquanto ele tocava. O meliante só não contava com um detalhe: sempre que largava uma garrafa pela metade, Arthur estalava o dedo contra o gargalo e conferia o tom da nota emitida. Na volta, repetia o processo. Se ele tinha largado a garrafa em lá, e ela agora se encontrava em fá, é porque algum esperto havia tomado uma terça maior do seu precioso líquido… (outra história que ficou famosa foi sua tentativa de identificar um carro que o atropelara pelo tom da buzina. Não deu, claro. Mas aumentou a lenda).

E não se pode fechar o assunto “Arthur” sem lembrar que ele foi também um pioneiro na publicidade. Nos anos de 1950, montou um estúdio caseiro com um gravador que só ele – evidentemente – sabia operar. E ali gravava jingles e comerciais de rádio.

Arthur Elsner. Figurinha tão carimbada da boemia porto-alegrense que recebeu de presente até um poema de outro boêmio notório, Mario Quintana:

Um dia, um ceguinho de nascença…
– pois bem, para ser mais explícito e para conservar
por mais algum tempo a sua passageira imagem
neste mundo –
um dia
numa daquelas nossas conversas de bar,
o sanfonista Artur (sic) Elsner me confessou:
“Bem sei que, para vocês eu, teoricamente, estou nas trevas.”
Teoricamente?! – pensei, num comovido espanto
Talvez no mesmo silencioso espanto com que os anjos escutam
as palavras que digo
dentro da minha treva iluminada.

* * *
E se no final dos anos 1910 quem volta do Benjamin Constant é Arthur Elsner, uma década depois acontece o mesmo com outro grande músico cego: o violonista Levino Albano da Conceição. Que tem quem diga que nasceu em Caçapava (RS), mas a maior parte dos pesquisadores garante que veio ao mundo em Cuiabá, Mato Grosso. Também não há consenso quanto ao ano: 1895 ou 1896. O dia é mais fácil: 12. O mês também varia: outubro ou novembro. Ééé, amigo: dureza!

Enquanto Elsner era cego de nascença, Levino perdera a visão aos sete anos. Mas aos nove (há quem diga aos 12) já era conhecido como um dos melhores violonistas – e grande improvisador – de Cuiabá. Mais um da longa série de meninos prodígio desse capítulo. Que geração!

Aos 22, não se sabe como nem por que, estava morando em Porto Alegre. E é na capital gaúcha que vai estrear oficialmente num palco, com um concerto no Theatro São Pedro, em 1918. Logo em seguida, está no Rio de Janeiro, estudando no Benjamin Constant. Lá, se especializa em violão com o renomado professor Joaquim dos Santos. E não se limita a estudar: logo é também professor de música de seus colegas cegos.

Volta a Porto Alegre e passa alguns anos no estado, deixando a comunidade musical boquiaberta. Tocava na capital e por todo o interior, fazendo imenso sucesso entre plateias frequentadíssimas por músicos. Todos estavam lá pra ver de perto suas interpretações muito pessoais de páginas eruditas adaptadas, como A Cavalaria Rusticana, ou os dificílimos tanguinhos e choros que compunha. Peças que, já pelo título, avisavam o que vinha pela frente: Marciano no Choro, Não Combina, Não Salta José (essa aqui) ou Há Quem Resista? Como quase todos os grandes músicos de sua geração, logo entrou pra turma de Octavio Dutra.

Octavio Dutra foi um dos que acolheu
o violinista Levino Albano da Conceição
em seu time. Foto: Reprodução
Nos anos 1930, era um dos maiores nomes do instrumento no país, figurinha carimbada na revista carioca O Violão, chamado de O Rei do Violão pela imprensa e destaque do Dicionario de Guitarristas,editado em 1935 em Buenos Aires por Domingo Prat. Diz ali: Es considerado como uno de los más grandes solistas de su patria, alcanzando su nombre una notoriedad en verdad muy grande.

Como Octavio Dutra, também fez nome como maestro-ensaiador de alguns dos melhores grupos carnavalescos de então (os dois chegam a assinar em parceria uma série de sucessos momescos, comoVictoria), como o Bloco dos Tigres. E aí, em 1939 – há quem fale em 1933 – se muda novamente para o Rio. E, dali, para os palcos de todo o Brasil, sempre achando um tempo pra fundar escolas de música para cegos (com apoio do Instituto Benjamin Constant) e dar aulas para futuros virtuoses. Como Dilermando Reis, que começou sua carreira ainda garoto acompanhando o mestre.

Para lembrar o amor que sempre teve à terra que primeiro o reconheceu à grande (ou, talvez, o tenha parido), compôs peças como Canção Gaúcha ou Saudades do Rio Grande. No fim da vida, foi morar em Cuiabá. Onde, segundo alguns, morreu em algum ponto dos anos de 1950. Mas outros afirmam – apostaria nessa – que sua morte foi em Niterói, no Rio, dia 19 de fevereiro de 1955.

* * *
Na literatura, a Porto Alegre pré-Revolução de 30 está imersa nas vanguardas modernistas, com nomes como Tyrteu Rocha Vianna, Ernani Fornari, Athos Damasceno e Augusto Meyer – todos fazendo boa poesia sobre temas urbanos e regionais.

Borges de Medeiros há 24 anos
governava o Estado como se
fosse um imperador. Foto:
Reprodução. 
Na política, com uma única ausência entre 1908 e 1913, Borges de Medeiros há 24 anos governava o estado como se fosse um imperador. Para isso, inclusive, havia enfrentado a sangrenta Revolução de 23, liderada por um Assis Brasil furibundo por perder mais uma eleição fraudada. Foram 324 dias de muita correria e poucos (mas sangrentos) combates – sem falar nas vergonhosas orgias dos degoladores, em pleno século XX. Mas não tinha como: contra as metralhadoras dos legalistas, os revolucionários iam com cargas de lanceiros, a mesma estratégia usada um século antes, na Revolução Farroupilha. Cinco anos depois, em 1928, Getúlio Vargas começa sua irresistível ascensão política justamente conciliando os até então inconciliáveis chimangos e maragatos.

E ainda nessa década, entre 1924 e 1927, um líder tenentista extremamente carismático parte de Santo Ângelo e percorre 25 mil quilômetros de Brasis, à frente da sua coluna de milhares de homens. Queriam derrubar o governo de Artur Bernardes. Acabaram dispersos, na Bolívia. E o tal líder, de nome Luís Carlos Prestes, começaria ali sua lenda.

E ainda pintando o cenário desses anos de 1920, há que se falar dos cafés e confeitarias com música ao vivo, então popularíssimos. Porto Alegre tinha mais de 30, cada um com sua orquestrinha, sua típica de tango ou ambos. Cenário brilhantemente retratado in loco pelo cronista Achylles Porto Alegre: O café moderno é o ponto de reunião dos intelectuais, dos jornalistas, dos artistas e dos políticos. Ali, entre uma fumaça e um gole de café, se combinam os mais arrojados planos literários, artísticos ou administrativos. Ali se concebem num relance diante da chávena ou do cálice inspirador, o poema, o romance, o artigo de fundo, a crônica, o quadro, a eleição do presidente da República ou a organização de um ministério. Ali se planejam revoluções e deposições de governo. Ali se guinda o indivíduo ao Capitólio ou se arremessa da Rocha Tarpea. Ali, o escritor naturalista ou realista vai estudar, surpreender e apanhar os tipos vivos de seus contos, de suas novelas e romances. (…) É, por assim dizer, o pivô da vida contemporânea.

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Aqui pra ouvir o próprio Levino tocando uma peça sua, em 1930
Aqui ele, também em 1930, tocando Schumann (te mete!)
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