14 de novembro de 2011

DICA: COMO MUDAR O MUNDO - Marx e o Marxismo

Formato: Livro
Original: HOW TO CHANGE THE WORLD
Tradução: Donaldson M. Garschagen
1ª ed. - 2011
424 p
Assunto: CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Sinopse: Como demonstram os prefácios, artigos, conferências e ensaios reunidos em Como mudar o mundo, a militância política de Eric Hobsbawm tem convivido de modo fecundo com sua consagrada produção intelectual. Numa coletânea que abrange décadas de intensa proximidade com a obra de Karl Marx (1818-83) e a tradição marxista, o historiador britânico reafirma a atualidade das reflexões sobre o capitalismo realizadas pelo filósofo, sociólogo e jornalista alemão - e seu colaborador, Friedrich Engels (1820-95) - a partir da década de 1840.O livro consiste numa espécie de tributo à influência de Marx sobre Hobsbawm, algo visível ao longo de toda sua trajetória acadêmica e política. Firmemente estabelecidas desde 1931, quando ingressou ainda adolescente numa liga de jovens comunistas em Berlim, as simpatias ideológicas do historiador não comprometem, contudo, a lucidez da sua interpretação dos trágicos erros cometidos ao longo do século XX em nome das ideias do autor de O Capital. 
A primeira parte de Como mudar o mundo é dedicada ao estudo das condições de produção e recepção dos textos fundadores do marxismo, como o Manifesto do partido comunista, os Grundrisse e A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Hobsbawm aponta os antecedentes históricos do pensamento marxiano em diversos autores, destacando, contudo, sua originalidade na interpretação global da sociedade capitalista e de suas contradições atuais.
Na segunda parte, o autor analisa a história do marxismo a partir da década de 1890 (depois da morte de Engels), destacando sua trajetória inicial entre os sindicatos operários, o crescimento dos partidos social-democratas europeus, a luta antifascista entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e a influência do marxismo na obra de intelectuais do pós-guerra e nos regimes comunistas da Europa e da Ásia. O pensador italiano Antonio Gramsci e sua intervenção no debate marxista são objeto de dois capítulos. (Companhia das Letras)

Leia abaixo, trecho do primeiro capítulo:

Marx hoje - Por Eric Hobsbawm, tradução de Donaldson M. Garschagen

Qual é a relevância de Marx no século XXI? O modelo de socialismo ao estilo soviético — até agora a única tentativa de construir uma economia socialista — não existe mais. Por outro lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da globalização e da pura e simples capacidade de geração de riqueza por parte dos seres humanos. Isso diminuiu o poder e o âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas clássicas dos movimentos social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar os governos nacionais em favor de reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desigualdade econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao ritmo cíclico básico da economia capitalista, incluindo a desordem que se tornou a mais grave crise mundial desde a década de 1930.

Nossa capacidade produtiva possibilitou, pelo menos potencialmente, que grande parte dos seres humanos passasse do reino da necessidade para o da afluência, da educação e de opções de vida antes inimagináveis, embora a maior parte da população do mundo ainda esteja por entrar nesse domínio. No entanto, durante a maior parte do século XX, os movimentos e regimes socialistas ainda atuavam essencialmente dentro do reino da necessidade, mesmo nos países ricos do Ocidente, onde surgiu uma sociedade de afluência popular nos vinte anos que se seguiram a 1945. Contudo, no reino da afluência, os objetivos de alimentação, vestuário, habitação, empregos para garantir renda e um sistema de bem-estar social para proteger as pessoas das vicissitudes da vida, ainda que necessários, já não constituem um programa suficiente para os socialistas.

Um terceiro desdobramento é negativo. Como a expansão espetacular da economia global ameaçou o meio ambiente, tornou-se urgente a necessidade de controlar o crescimento econômico desenfreado. Há um óbvio conflito entre a necessidade de reverter ou de pelo menos controlar o impacto de nossa economia sobre a biosfera e os imperativos de um mercado capitalista: crescimento máximo e contínuo na busca do lucro. Esse é o calcanhar de Aquiles do capitalismo. Não podemos, no presente, prever de onde partirá a flecha que lhe será fatal.

Assim, como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humanidade e não somente para uma parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como analista econômico? Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o entendimento da história humana? Sim, porém o ponto que Attali sublinhou corretamente é a abrangência universal de seu pensamento. Não se trata de um pensamento “interdisciplinar” no sentido convencional, mas integra todas as disciplinas. Como escreveu Attali, “antes dele, os filósofos consideraram o homem em sua totalidade, mas ele foi o primeiro a apreender o mundo como um todo que é, ao mesmo tempo, político, econômico, científico e filosófico”.

É absolutamente óbvio que grande parte do que ele escreveu está obsoleto, e que parte de seus textos não é — ou não é mais — aceitável. É também evidente que seus textos não formam um corpus acabado, mas são, como toda reflexão que merece esse nome, um interminável trabalho em curso. Ninguém mais vai transformá-lo em dogma e muito menos numa ortodoxia protegida por instituições. Isso certamente teria chocado o próprio Marx. No entanto, devemos também rejeitar a ideia de que existe uma nítida diferença entre um marxismo “correto” e outro “incorreto”. A forma de investigação de Marx podia produzir diferentes resultados e perspectivas políticas. Com efeito, ela gerou esse resultado com o próprio Marx, que imaginou uma possível transição pacífica para o poder na Grã-Bretanha e na Holanda, e a possível evolução da comunidade rural russa para o socialismo. Kautsky e até Bernstein foram herdeiros de Marx, tanto (ou tão pouco, como se prefira) quanto Plekhanov e Lênin. É por isso que encaro com ceticismo a distinção que Attali faz entre um verdadeiro Marx e uma série de subsequentes simplificadores ou falsificadores de seu pensamento — Engels, Kautsky, Lênin. Era tão legítimo para os russos, os primeiros leitores atentos de O capital, ver a teoria marxiana como uma maneira de fazer passar países como o deles do atraso para a modernidade, através do desenvolvimento econômico do tipo ocidental, quanto era também legítimo para o próprio Marx especular se uma transição direta para o socialismo não poderia ocorrer com base nas comunidades rurais russas. Provavelmente, na verdade, isso estava mais de acordo com a linha geral do pensamento do próprio Marx. A experiência soviética não foi criticada porque o socialismo só pudesse ser construído depois que o mundo inteiro tivesse se tornado capitalista, o que não foi o que Marx disse nem o que se pode afirmar com segurança que fosse sua convicção. A crítica tinha uma base objetiva: a Rússia era atrasada demais para produzir qualquer coisa que não fosse a caricatura de uma sociedade socialista — “um império chinês vermelho”, como consta que Plekhanov teria avisado. Em 1917, esse teria sido o consenso predominante entre todos os marxistas, até mesmo entre a maioria dos marxistas russos. Por outro lado, a crítica feita aos chamados “marxistas legais” da década de 1890, que defendiam a ideia de Attali, segundo a qual a principal tarefa dos marxistas consistia em criar um florescente capitalismo industrial na Rússia, também era empírica. Uma Rússia capitalista liberal tampouco seria viável com o tsarismo.

No entanto, vários aspectos centrais da análise de Marx continuam válidos e relevantes. O primeiro, obviamente, é a análise da irresistível dinâmica global do desenvolvimento econômico capitalista e de sua capacidade de destruir tudo quanto se antepusesse a ele, até mesmo aqueles elementos do legado do passado humano do qual ele próprio se beneficiara, como as estruturas familiares. O segundo é a análise do mecanismo de crescimento capitalista, pela geração de “contradições” internas — surtos infindáveis de tensões e soluções temporárias, o crescimento levando a crises e mudanças, tudo produzindo concentração econômica numa economia cada vez mais globalizada. Mao sonhou com uma sociedade renovada constantemente pela revolução permanente; o capitalismo realizou esse projeto com a mudança histórica, mediante o que Schumpeter, seguindo Marx, chamou de “destruição criadora” permanente. Marx acreditava que esse processo acabaria por levar — forçosamente — a uma economia enormemente concentrada. E foi isso que Attali quis dizer ao declarar numa entrevista recente que o número de pessoas que decidem o que acontece nessa economia é da ordem de mil, ou no máximo 10 mil. Marx acreditava que isso conduziria à supressão do capitalismo, previsão que ainda me parece plausível, mas de uma forma diferente da imaginada por ele.

Por outro lado, sua previsão de que tal supressão ocorreria mediante a “expropriação dos expropriadores”, com um vasto proletariado levando ao socialismo, não se baseava em sua análise do mecanismo do capitalismo, e sim em pressupostos apriorísticos separados. Na melhor das hipóteses, baseava-se na previsão de que a industrialização produziria populações majoritariamente assalariadas, como estava ocorrendo na Inglaterra da época. Isso podia ser correto como uma previsão de médio prazo, mas não, como sabemos, a longo prazo. Depois da década de 1840, Marx e Engels tampouco esperaram que o fenômeno gerasse a pauperização politicamente radicalizadora em que depositavam suas esperanças. Como era óbvio para ambos, não havia de modo algum amplos segmentos do proletariado que estivessem se tornando mais pobres. Com efeito, um observador americano dos congressos proletários do Partido Social-Democrata Alemão na década de 1900 observou que os camaradas que deles participavam pareciam “um ou dois pães acima da pobreza”. Por outro lado, o evidente crescimento da desigualdade econômica entre diferentes partes do mundo e entre as classes não produz necessariamente a “expropriação dos expropriadores” a que Marx se referiu. Em suma, as esperanças para o futuro eram vistas em sua análise, mas não derivavam dela.

O terceiro aspecto foi bem expressado pelo falecido sir John Hicks, laureado com o Nobel de economia, que escreveu: “As pessoas que desejam atribuir um rumo geral à história deveriam usar as categorias marxistas ou uma versão modificada delas, uma vez que não existem muitas soluções alternativas”.

Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI, mas, quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus vários discípulos.

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