27 de fevereiro de 2012

A CONTABILIDADE DESTRÓI A MORAL - Rita Silva Freire



Troika e cultura, mercados financeiros e romances, agências de rating e poesia. Conceitos tão dispares foram sistematicamente postos lado a lado, nos mesmos parágrafos, pelos vários escritores que passaram pelas sete mesas que fizeram a 13.ª edição do festival literário Correntes d'Escritas, que acabou no ontem, no Póvoa de Varzim. Ao longo de três dias foram propostos temas aos autores para debate, todos eles, de algo forma, conjugando a actual situação financeira e respectivo léxico com a literatura nas suas diferentes formas.

A última mesa não foi excepção e Eugénio Lisboa, Gonçalo M. Tavares, Helena Vasconcelos, João de Melo, Luís Sepúlveda e Onésimo Teotónio Almeida viram-se a braços com o tema 'As ideias são fundos que nunca darão juros nas mãos do talento'. Gonçalo M. Tavares, cuja escrita é tantas vezes referida como 'analítica' ou 'matemática', fez jus ao epíteto e dedicou-se a fazer a contabilidade à literatura.

Quando vinha no comboio para o Norte, o autor de Jerusalém pôs-se a pensar na frase tantas vezes repetida 'estou a contar contigo'. E logo notou que, embora seja dita habitualmente com um sentido afectivo, está presente nela o seu ponto de vista contabilístico. «Há uma origem monetária na frase» disse, lembrando o significado do verbo contar, tantas vezes usado nas somas. «Mas está também ligada à literatura. Estou a contar uma história contigo remete para uma verdade da narrativa. Significa que estamos a contar a mesma história, com os mesmos factos, que não me desmentirás. E uma riqueza muito grande, confio afectivamente no outro». Mas entre o contar uma história e o contar matemático, de enunciar o um, o dois, e o três, lembrou o escritor, há também uma ligação. Tal como há uma sequência nos números que se contam, há também uma sequência na história que se narra. Ou seja, «há uma contabilidade simples na sequência narrativa».

Em seguida, Gonçalo M. Tavares lembrou que a contabilidade nasceu com os armazenistas, que contabilizavam os produtos armazenados. «Isto significa que só começamos a contar quando guardamos», disse. «O ser humano só começou a contar quando sentiu a necessidade de guardar a memória. As narrativas são uma espécie de armazém mundial».

À medida que a viagem de comboio prosseguia rumo ao Porto, Gonçalo M. Tavares lembrou-se do oposto de contar: descontar. E ficou contente. «É contar ao contrário, inverter a ordem normal da contagem. Podia haver outra categoria literária, os descontos». «As Memórias Póstumas de Brás Cubas seriam um desconto».

Mas nem tudo é poesia. «O problema da contabilidade é que é potencialmente perigosa e violenta», advertiu o escritor, que aproveitou para ler parte de um discurso de Hitler, em que este lembrava que os alunos com problemas mentais ou cegueira custam muito mais ao Estado do que um aluno dito normal. «O perigo da contabilidade é esse: quando há pouco dinheiro a contabilidade é aquilo que vai potencialmente eliminar os danos morais». «A pena de morte sai mais barata que a prisão» disse, lembrando que um preso tem custos para o Estado relacionados com a alimentação, a alimentação, a electricidade. «Se entrarmos num mundo contabilístico, os valores morais vão desaparecer». Gonçalo M. Tavares deixou, ainda, um último aviso: «Ninguém nos vai cortar a cabeça já hoje. É degrau a degrau que o mundo contabilístico vai destruir a moral. E aquilo que considerávamos direitos humanos inalienáveis, passados dez anos, vão passar a ser prescindíveis. A moral sai muito mais cara».

rita.s.freire@sol.pt

Extraído do sítio da Sol

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