4 de março de 2012

A HISTÓRIA DAS GUERRAS DO SUL CHEGA AO MERCADO NACIONAL EM DOIS LIVROS "SEVERIANOS" - Geraldo Hasse


O autor José Antônio Severo. Foto:
Tania Meinerz
Na próxima quarta-feira, 7 de março, o escritor gaúcho José Antônio Severo será o protagonista central de uma façanha literária que só encontra paralelo em ícones como Erico Veríssimo e Mario Quintana: autografa numa única noitada, em horário nobre, dois livros num dos maiores templos da literatura brasileira — a Livraria Cultura, no térreo do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, 2073, em São Paulo.

Somando mais de mil páginas, Rios de Sangue e Cinzas do Sul (R$ 59,90 cada), editados pela Record, do Rio, repassam 100 anos de guerras pela consolidação do território nacional na fronteira mais sanguinolenta do Brasil. Síntese do “romance histórico” O General Osório e Seu Tempo, editado em 2008 pela Expressão, de Florianópolis, com patrocínio da Copesul, os dois livros destinam-se ao público jovem que vem se revelando leitor interessado em temas históricos, veio (re)aberto por Eduardo Bueno (Náufragos, Traficantes e Degredados), Jorge Caldeira (Mauá) e Laurentino Gomes (1808), entre outros.

Prestes a completar 70 anos, o caçapavano Severo se firma como o mais prolífico contador de histórias das guerras que ensanguentaram a província gaúcha no século XIX. Seus personagens são caudilhos e generais que atuaram nas fronteiras com os países vizinhos, ora como inimigos, ora como aliados contra os tiranos históricos Rosas, argentino, e Lopez, paraguaio.

Jornalista a vida toda, Severo se criou no seio de uma família em que se mesclavam lenços brancos e encarnados. A mãe era afilhada do chefe chimango Borges de Medeiros e o pai, fazendeiro, usuário do lenço colorado do Partido Libertador. Seus seis irmãos formavam um arco-íris ideológico. Assim, pode-se dizer que desde guri o futuro escritor aprendeu que toda história tem pelo menos dois lados.

Quando chegou à idade de cuidar da própria vida, depois de se formar como técnico agrícola na Escola Técnica de Viamão, onde foi aluno interno, Severo tinha na mão lápis e trena para tornar-se um bom contador de histórias, da agricultura à política.

Improvisado como jornalista, começou em Porto Alegre (O Dia), foi para São Paulo (Realidade), morou em Santiago do Chile (Prensa Latina), viveu no Rio (TV Globo), voltou a Porto Alegre (Folha da Manhã), comprou casa em São Paulo (TV Bandeirantes) e se tornou itinerante no Brasil e na América Latina como diretor do diário Gazeta Mercantil. Por quase uma década teve residência mais ou menos fixa em Florianópolis.

Nessa carreira de “latin-trotter”, acumulou ainda uma notável experiência como responsável pela comunicação social da Copesul, onde trabalhou ao lado do superintendente Luiz Fernando Cirne Lima, o agrônomo gaúcho que foi ministro da Agricultura do governo do general Emilio Médici (1969-1974). Ao patrocinar a edição de várias obras histórico-literárias, a Copesul arregimentou um grupo de trabalhadores intelectuais instados a repensar a história do Rio Grande do Sul.

Entretanto, mais preocupado em viabilizar projetos alheios do que em colocar na estrada a sua própria tropilha de causos, Severo já beirava os 60 anos quando se deu conta de que tinha bagagem suficiente para escrever livros inéditos sobre episódios esquecidos da história riograndense. Valeram-lhe, no caso, as amizades com o jornalista Elmar Bones, autor e editor de livros (Já Editores) sobre a história riograndense; o empresário editorial Zuba Coutinho, fundador da revista Expressão, de Florianópolis; e o cineasta Tabajara Ruas, de quem se tornou parceiro em projetos cinematográficos voltados para as raízes guerreiras dos gaúchos.

Foi nessas idas e vindas por cenários sulinos que, no final do século XX, Severo escreveu Os Senhores da Guerra, um senhor livro (L&PM Editores, 2000) de 500 páginas sobre o caudilho-infante Julio Bozzano, morto aos 24 anos em escaramuças da última guerra civil gaúcha, em 1924. Prefeito de Santa Maria apontado como potencial sucessor de seu padrinho Borges de Medeiros na chefia política gaúcha, o Dr. Bozzano – hoje nome de rua central da cidade de Santa Maria – já virou figura de cinema: o filme homônimo de Tabajara Ruas, baseado no livro, está em final de montagem e deve estrear este ano. Os Senhores da Guerra é tão rico que deu origem a um segundo roteiro de longa-metragem, a ser filmado nos próximos meses pela mesma equipe de Ruas, que só espera a conclusão da captação de recursos para ir aos campos de batalha/filmagens.

A Batalha do Riachuelo, da Guerra do
Paraguai
O segundo grande livro de Severo, em torno da figura do general Osório, revela um excepcional domínio dos bastidores da história do Cone Sul, da Guerra da Cisplatina à Guerra do Paraguai, passando pela Revolução dos Farrapos. Extremamente didáticos, os capítulos recontam episódios sem firulas, numa linguagem jornalística semelhante às metralhadoras de velhos cronistas políticos como Carlos Castello Branco, o Castelinho, que pontificou no Jornal do Brasil por quatro décadas. A diferença é que no arrastão severiano não vêm apenas desavenças políticas, mas incidentes bélicos com detalhes técnicos e estratégicos, causos econômicos e picuinhas familiares.

Nesta entrevista ao Sul21, José Antonio Severo fala de seus personagens históricos e dá detalhes sobre o conteúdo de sua obra mais importante.

Sul21 – Os livros Rios de Sangue e Cinzas do Sul são um simples desdobre daquele baita volume de quase 900 páginas — O General Osório e Seu Tempo?

A capa de Rios de Sangue
Severo – É uma nova edição que sofreu várias adequações para circular no mercado nacional. Por isto, cortei mais de 300 páginas da edição original da Expressão. Dei também uma boa copidescada, corrigi cuidadosamente a ortografia, atualizando-a à nova lei, e suprimi erros de revisão que passaram daquela vez.

Sul21 – O livro O General… é tem capa dura, é uma edição quase de luxo, nem parece ter tantos erros assim.

Severo - Foi um livro feito às carreiras para alcançar os últimos momentos das comemorações do bicentenário de Osório e por isto sua edição sofreu imperfeições. Para que o leitor tenha uma idéia, a editora contratou o jornalista Nei Duclós, gaúcho de Uruguaiana e um soberbo escritor e experiente copidesque, com passagens pela Veja, Folha de S. Paulo e outras publicações, para vir correndo atrás de mim que escrevia o texto básico do livro. Ele vinha cortando repetições, corrigindo e suprimindo. Chegamos ao final quase juntos e o livro foi direto para a gráfica, caso contrário ficaria fora dos prazos da Lei Rouanet e perderíamos a Feira do Livro de Porto Alegre.

Sul21 – Isso em 2008, mas e agora: cortar mais de 300 páginas do livrão do General Osório não significou suprimir pedaços relevantes da história para os leitores não gaúchos?

Severo – Achei melhor suprimir detalhes históricos que poderiam ser tediosos para um público leigo. O conhecimento básico da História do Rio Grande do Sul é uma pré-condição para ler O General, pois há muitos fatos e informações que demandam certa base gauchesca para seu entendimento.

Sul21 – Mas só houve cortes, não há nenhuma novidade?

Severo - Nesta nova edição acrescentei um pouco mais de ficção. Por exemplo: para a abertura de Cinzas do Sul, escrevi um novo capítulo, extraído da história da razia em Bella Unión, no Uruguai, em que Osório e um pequeno grupo exterminaram um covil de “bandoleros”. Ficou um “spaghetti western”. Ali também introduzi Menino Diabo, um chefe de bandoleiros português e anão, que mais tarde serviu aos Farrapos. Isto é pura ficção, pois não sei se Diabo era efetivamente um daqueles. Mas é um bom personagem de nossa história que não poderia passar em branco. Então coloquei-o lá. Assim posso dizer que é mais romance do que o General…, um livro que, embora de difícil manuseio, está muito forte no mercado secundário. Um amigo publicitário de São Paulo me disse que pagou R$ 300 pelo livro num sebo. Quando foi lançado na Livraria Cultura, O General custava R$ 80.

Sul21 – Afinal de contas, o general Osório continua sendo a personagem central dos dois livros?

Osório, o personagem principal
Severo - A personagem central dos dois livros continua sendo o general Osório. Em Rios de Sangue, ele divide o palco com seu pai, Manoel Luiz da Silva Borges, um açoriano de Florianópolis que veio para o Rio Grande e comandou o corpo de cavalaria de Caçapava do Sul, radicando-se nessa (minha) cidade. É bom esclarecer que Silva Borges não era seu nome de famíia, mas assim ficou em sua documentação. Por isto Osório não tem o sobrenome do pai. Manoel Luiz (este era o verdadeiro sobrenome do neto de açorianos oriundo da Lagoa da Conceição) é o típico lusobrasileiro riograndense daqueles tempos.

Sul21 – E os Bentos?

Severo – O Gonçalves e o Ribeiro frequentam todo o Rios de Sangue. Também aparecem com destaque figuras fundadoras da Argentina e do Uruguai, todos muito conhecidos dos gaúchos porque são os nomes de ruas centrais de Buenos Aires e Montevideo. Rios de Sangue é um livro de introdução a Cinzas do Sul. Ele conta a primeira parte da guerra dos cem anos do Cone Sul. Vai da invasão espanhola pelas tropas comandadas por Ceballos (1767) até o fim da Guerra da Cisplatina (1825-1828). Esta primeira parte mostra como essas terras então desérticas (de gente, pois também se chamavam de deserto as áreas despovoadas) eram parte central de um grande conflito europeu que se espalhava pelo mundo inteiro. Inglaterra e Portugal, aliados, enfrentavam as forças continentais lideradas pela França, em alianças que variaram mas que tinham um mesmo conteúdo geopolítico: os dois países periféricos, Inglaterra e Portugal, lutando por sua sobrevivência. No caso português, dramaticamente, pois a gula espanhola por anexar o último condado ibérico que não se submetia a Castela era uma ameaça aterradora. Não há dúvida, em meu livro, de que sem a aliança com Londres Portugal teria desaparecido. Para a Inglaterra, do ponto de vista puramente político, a independência de Portugal era um anteparo decisivo paras travar o poderio espanhol. Assim as guerras vão se sucedendo, mas sempre nesse enfoque de portugueses e ingleses lutando contra a Espanha em conflitos sucessivos.

Sul21 – Rios de Sangue é no fundo um livro sobre lutas coloniais entre impérios europeus.

Severo - Era uma guerra mundial, pois havia conflitos na África, Ásia e Oceania (Timor foi atacada). Depois veio Napoleão Bonaparte, que dominou a geração de fatos políticos no Cone Sul até 1815 e, daí para a frente, volta a Espanha tentando recolonizar seus domínios sulamericanos. Neste processo a Guerra da Cisplatina é um último rescaldo. De 1830 em diante os confitos regionais perdem seu caráter mundial e passam a se relacionar com a formação dos atuais países, numa confusa teia de guerras civis ibero-americanas. Rios de Sangue, portanto, é o romance da guerra mundial que teve no espaço do vale do rio Uruguai um de seus teatros de operações. Na fase final dessa grande guerra surge um jovem riograndense chamada Manoel Luiz Osório, o General Osório que é rua ou praça em todo o Brasil e único militar brasileiro que é rua nas capitais dos países vizinhos, Assunção, Buenos Aires e Montevideo.

Sul21 – Se os Rios de Sangue representam as guerras e revoluções, a que se referem as Cinzas do Sul?

Rosas
Severo - Cinzas do Sul trata do Cone Sul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, de 1830 em diante. As grandes figuras dessa época são Rosas e Mitre na Argentina, cada um em seu tempo; Caxias e Osório no Brasil, parceiros políticos e militares; Lavalleja e Rivera no Uruguai, rivais mas confluentes no projeto de independência e consolidação da nacionalidade; os dois Lopez, Carlos e Solano, no Paraguai. No Rio Grande temos os antagonistas de nosso personagem: Sebastião Barreto, que o perseguiu e prendeu; Pedro Chaves, adversário inconciliável; e Manoel Marques de Souza, companheiro de armas que se transforma em adversário político dentro do mesmo Partido Liberal.

Sul21 – E quem eram os amigos de Osório?

Severo – Eram principalmente os soldados, de quem ele era ídolo. Muito importante é o compadre e padrinho (de casamento) de Osório, Emílio Mallet, atual patrono da arma de Artilharia do Exército. Vindo da França, Mallet foi um grande guerreiro, mas também um homem de visão que se radicou em Bagé e desenvolveu as minas de carvão de Candiota, introduziu a construção de alvenaria em grande escala e – fantástico! — introduziu o cultivo da alfafa no Rio Grande do Sul. Até a descoberta do motor a explosão, a alfafa era a gasolina do gaúcho. Aliás, Mallet deu umas tintas de francês a Osório, que por sua vez falava o guarani.

Sul21 – Caxias e Osório eram amigos?

Severo – Caxias sempre foi chefe de Osório, desde a Revolução Farroupilha até o final da Guerra do Paraguai, quando os dois combateram juntos na batalha de Itororó, na qual Osório levou um balaço no rosto e perdeu quatro dentes. Depois, na política, eles tiveram diferenças alimentadas por fofocas e vaidades. Os dois eram heróis nacionais, mas parece que Caxias se ressentiu da extraordinária popularidade de Osório, que no final da vida foi eleito senador e virou ministro da Guerra.

Sul21 – As Cinzas do Sul são as cinzas do carvão gaúcho ou o rescaldo político do Cone Sul?

Cinzas do Sul
Severo - Cinzas do Sul contempla a segunda fase da formação política do Cone Sul. Entre 1830 e 1870 tudo acontece: a Argentina evolui de uma federação de estados independentes para uma confederação de províncias unidas e por fim converte-se na atual República Argentina; o Brasil consolida sua unidade nacional. É preciso lembrar que na Guerra da Cisplatina ainda se jogava, nas planícies sulinas, um campeonato mundial, pois Dom Pedro I e IV de Portugal pensava reconstruir um Reino Unido, criando um estado que teria posses nos cinco continentes. Quando D. Pedro I morreu havia um forte movimento para que ele voltasse como regente de seus dois filhos menores coroados, Pedro II do Brasil e Maria II de Portugal. Sua morte desencadeia no Brasil as revoltas regenciais, a maior parte delas republicanas e separatistas. A Revolução Farroupilha foi a mais expressiva, mas não a única. Simultaneamente, com a derrota espanhola na Bolívia, os últimos europeus deixam de influir e nos países do Prata (também na Grã Colômbia, mas isto deixei de lado) se instala um período de guerras civis, que se entrelaçam com a farroupilha. De fato, isto só vai acabar no fim da Guerra do Paraguai (1865-70), em que as fronteiras atuais se cristalizam e a América do Sul entra num período de paz que perdura até hoje, salvo alguns arrotos irrelevantes.

Extraído do sítio do Sul21

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