7 de março de 2012

O QUE FAZ UM ESCRITOR, SEGUNDO RUBEM FONSECA - Luis Ricardo Duarte

Foto: Zeca Fonseca

O escritor recluso, cioso do seu espaço e da sua imagem, passageiro invisível da literatura de língua portuguesa, revelou-se um performer nato, capaz de cativar uma plateia com poucas palavras. Rubem Fonseca andou, falou, sorriu, citou, encolheu-se e libertou-se e deixou, para quem quis ouvir e seguir-lhe o conselho, os seus cinco mandamentos: loucura, alfabetização, paciência, motivação e imaginação. Mas isto é ir rápido demais.


De início, Rubem Fonseca, que nesta primeira mesa das Correntes d'Escritas foi acompanhado por Almeida Faria, Eduardo Lourenço, Hélia Correia e Ana Paula Tavares, companheiros de luxo, portanto, começou por dizer que era do estilo peripatético. Só consegue falar enquanto anda. Levantou-se, pegou no microfone e deu o primeiro passo. O que, como se sabe, ou pelo menos como diz o ditado português, segundo o qual devagar se vai ao longe, lançou-se para a sua intervenção. Desta vez, como de manhã, não sublinhou o orgulho que sentia em ter sangue português a correr-lhe pelas veias. Isso já havia feito, pouco tempo antes da mesa ter começado, quando o Secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, lhe entregou a Medalha de Mérito Cultural, em nome do Governo português. Insistindo ainda nos ditados populares, poderíamos dizer que, se a casa todo o filho retorna, para os netos também está escrito semelhante destino. O seu pai, depois de emigrar, nunca voltou a Portugal. Mas agora o seu filho, escritor consagrado, aqui foi recebido com todas as honras que lhe são devidas. Rubem Fonseca disse até, num surpreendente tom de brincadeira, que só depois de vermos a sua intervenção na primeira mesa percebemos que lhe é tão natural, que esta era uma homenagem "mais do que merecida". Todos sorrimos. Ele também. 

E mais sorrimos quando o vimos a andar em cima do palco, da esquerda para a direita, em nossa direcção, falando sobre o que faz um escritor. Ou terá sido o que fez dele um escritor.? A dúvida ficou no ar, até porque o primeiro mandamento desarmou logo a plateia. "É preciso ser louco", disse ele, glosando o escritor norte-americano E. L. Doctorow, para quem escrever é uma forma socialmente aceite de esquizofrenia. E acrescentou: "Nessa mesa somos todos loucos. Cada um à sua maneira". Têm dúvidas? "Então leiam o texto do Foucault sobre as relações entre a loucura e a escrita literária". 

Para quem lê os livros de Rubem Fonseca, esta intervenção revelou tudo o que o escritor brasileiro tem de melhor. Uma escrita (e um discurso) ágil, um contínuo sentido de humor, uma erudição sem fim, citações suas e alheias e algum suspense. Nos livros, como na Póvoa. É que a seguir à loucura veio outro mandamento. "Basta ser louco?", questionou-se Rubem Fonseca. "Não. É preciso ser alfabetizado". Ajuda, de facto. "Mas não precisa de ser muito", brincou o autor de Bufo & Spallanzani. "Só existe um exemplo de um escritor analfabeto e foi no século XIV. Catarina de Siena". Mas esta era santa. Por isso: "Só podia ser milagre". Mas atenção, frisou Rubem Fonseca: "Como santa ela era louca, porque todos os santos são loucos". Não há dúvida. 

Adiante, que um terceiro mandamento se seguiu. Antes, uma ideia retirada de Conrad. "Todo o escritor deve fazer um leitor sentir e, acima de tudo, ver. Eis o que é mais importante. Ver para poder entender". E isso envolve inteligência? Nem por isso, basta lembrar o que dizia Somerset Maugham: "Ele conheceu centenas e centenas de escritores e poucos, muito poucos eram inteligentes. Eu concordo com ele, sabiam?". 

Então o que é preciso? O terceiro mandamento: "O escritor tem de ser motivado". Sem ela, nada faz. O mesmo dizia Rubem Fonseca no livro de crónicas José, em que recorda a sua infância: "Se o aspirante a escritor não tiver uma motivação forte escreverá quando muito alguns poemas de dor de cotovelo, alguns contos, talvez mesmo um romance, mas logo desistirá". 

Não se pense, contudo, que a motivação é coisa de outro mundo. Qualquer uma é válida. Veja-se o caso de Manuel Vázquez Montalbán, lembrou Rubem Fonseca: "Ele escrevia para poder ser alto e bonito", pois era "baixinho" e um "pouco feio". 

Já íamos com três características dos escritores. Faltavam duas, percebemos à medida que o show continuava. "É tudo? Não. Ele, o escritor, tem de ter paciência." Não uma paciência qualquer, mas a que o imperador romano Augusto cultivava, segundo Suetónio: Festina lente. "Apressa-te devagar". Nunca parar de fazer, mas fazê-lo devagarinho, como diria um bom alentejano. Todos os dias. Escrever, mas procurar sempre "le mot juste" de que falava Flaubert. "Ele, sim, sabia que não havia sinónimos. Ouviram, não existem sinónimos". Para esta intervenção também não. Um espectáculo. Que ainda não estava acabado.

"Muito bem", continuou Rubem Fonseca, com a nossa concordância. "Acabou?", acrescentou, com a plateia a responder por ele: "Não". Pois é. Faltava uma coisa. "Ele, o escritor, tem de ser imaginativo. Tem de ter imaginação." A mesma que encontramos nos seus livros.

"Está entendido?", perguntou o escritor brasileiro a fechar. Está sim, senhor Rubem Fonseca. "Só mais uma coisinha", acrescentou. "Vocês aí que não são escritores, não vão pensando que também não são loucos..."

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