8 de março de 2012

MULHER DA VIDA, MINHA IRMÃ - Cora Coralina


Mulher da Vida, minha Irmã. 
De todos os tempos. 
De todos os povos. 
De todas as latitudes. 
Ela vem do fundo imemorial das idades e 
carrega a carga pesada dos mais 
torpes sinônimos, 
apelidos e apodos: 
Mulher da zona, 
Mulher da rua, 
Mulher perdida, 
Mulher à-toa. 
Mulher da Vida, minha irmã. 
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas. 
Desprotegidas e exploradas. 
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito. 
Necessárias fisiologicamente. 
Indestrutíveis. 
Sobreviventes. 
Possuídas e infamadas sempre por 
aqueles que um dia as lançaram na vida. 
Marcadas. Contaminadas, 
Escorchadas. Discriminadas. 
Nenhum direito lhes assiste. 
Nenhum estatuto ou norma as protege. 
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos, 
pisadas, maltratadas e renascidas. 
Flor sombria, sementeira espinhal 
gerada nos viveiros da miséria, da 
pobreza e do abandono, 
enraizada em todos os quadrantes da Terra. 
Um dia, numa cidade longínqua, essa 
mulher corria perseguida pelos homens que 
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o 
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras, 
ela encontrou-se com a Justiça. 
A Justiça estendeu sua destra poderosa e 
lançou o repto milenar: 
“Aquele que estiver sem pecado 
atire a primeira pedra”. 
As pedras caíram 
e os cobradores deram s costas. 
O Justo falou então a palavra de eqüidade: 
“Ninguém te condenou, mulher... 
nem eu te condeno”. 
A Justiça pesou a falta pelo peso 
do sacrifício e este excedeu àquela. 
Vilipendiada, esmagada. 
Possuída e enxovalhada, 
ela é a muralha que há milênios detém 
as urgências brutais do homem para que 
na sociedade possam coexistir a inocência, 
a castidade e a virtude. 
Na fragilidade de sua carne maculada 
esbarra a exigência impiedosa do macho. 
Sem cobertura de leis 
e sem proteção legal, 
ela atravessa a vida ultrajada 
e imprescindível, pisoteada, explorada, 
nem a sociedade a dispensa 
nem lhe reconhece direitos 
nem lhe dá proteção. 
E quem já alcançou o ideal dessa mulher, 
que um homem a tome pela mão, 
a levante, e diga: minha companheira. 
Mulher da Vida, minha irmã. 
No fim dos tempos. 
No dia da Grande Justiça 
do Grande Juiz. 
Serás remida e lavada 
de toda condenação. 
E o juiz da Grande Justiça 
a vestirá de branco em 
novo batismo de purificação. 
Limpará as máculas de sua vida 
humilhada e sacrificada 
para que a Família Humana 
possa subsistir sempre, 
estrutura sólida e indestrutível 
da sociedade, 
de todos os povos, 
de todos os tempos. 
Mulher da Vida, minha irmã. 

Poesia dedicada, por Cora Coralina, ao Ano Internacional da Mulher em 1975.


Extraído do sítio Arte-Educação

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