14 de abril de 2012

MÍDIA ESCONDE HOMOSSEXUALIDADE DE PEDRO NAVA - Euler de França Belém

Relançamento das memórias de Pedro Nava é o acontecimento literário de 2012. Mas a imprensa faz questão de continuar escondendo que o brilhante escritor mineiro matou-se porque estava sendo chantageado por um garoto de programa. Memorialista deu um tiro na cabeça, numa praça pública.


Oscar Wilde (1854-1900), autor do romance “Dorian Gray” e de frases rever­be­rativas, teve um affair com Alfred “Bosie” Douglas — o que o levou, depois de um escândalo popularesco, à prisão. Um pouco de seu drama é contado no esplêndido “De Profundis”, espécie de canto do cisne do escritor irlandês. Nesta pequena obra-prima, possivelmente tendenciosa (mas confirmada no geral pelo biógrafo mais crível, o norte-americano Richard Ellmann), o criador de “A Importância de Ser Prudente” sugere que praticamente foi seduzido pelo jovem lorde. Pode ter ocorrido isto. O fato é que a “crise”, provocada mais pelo moralismo da sociedade inglesa do que pela homossexualidade do escritor e de seu parceiro — este, estranhamente, apresentado como vítima, talvez pela influência política e social de seu pai, um nobre —, destruiu a carreira e a vida de uma mente privilegiada. Wilde, que morreu com apenas 46 anos, era casado e tinha filhos. Recentemente, a história da homossexualidade do escritor José Donoso escandalizou o Chile, sobretudo porque revelada pelo próprio escritor, que deixou diários. O Brasil também trata a homossexualidade como “escândalo”. Ninguém escreve a biografia de Mário de Andrade, exceto o jornalista Jason Tércio, porque teme-se tocar na sua evidente homossexualidade. O escritor Lúcio Cardoso ganhou uma biografia reveladora — que retrata sua homossexualidade não protegida por parentes e críticos zelosos. A escritora Clarice Lispector, apaixonada, foi desprezada pelo autor do romance “Crônica da Casa Assassinada”. Depois de Mário de Andrade, a história da homossexualidade mais camuflada é a do memorialista mineiro Pedro Nava, que, chantageado por um garoto de programa, matou-se em 13 de maio de 1984, aos 80 anos. Agora, no relançamento de suas memórias — em edições caprichadas da Companhia das Letras, configurando, ao lado da obra do poeta Carlos Drummond de Andrade, também pela mesma editora, a maior publicação literária de 2012 —, os jornais novamente pisaram em ovos ao tratar a homossexualidade ou, mais precisamente, a bissexualidade de Nava, como se isto, a homossexualidade, fosse crime ou afronta à Humanidade. Nava conta, em seis livros, a sua história e a história de sua geração, e, ao fazê-lo, reconta o Brasil, não necessariamente pelo trabalho meticuloso do historiador, embora seja evidente que há pesquisa em seu trabalho, e sim pelo recurso à memória seletiva. Nava transformou a memória em alta literatura e, ao mesmo tempo, fez da literatura uma, digamos, história das mentalidades. Costurando tudo um delicioso texto, proustiano, muito bem-escrito — com sabor literário e riqueza existencial. A obra é mais importante do que o homem, claro, mas vale a pena, junto com Zuenir Ventura, revisitar a história do suicídio do memorialista, não para depreciá-lo, e sim para evidenciar que, às vezes, se tem uma vida secreta e, sobretudo, para discutir como a imprensa se comporta quando um dos seus (dos “nossos”) “cai em desgraça”.

Em 1984, consagrado como escritor, depois de publicar seis livros de memórias — no conjunto, a obra possivelmente tem a importância de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa —, Nava escrevia o sétimo volume, “Cera das Almas”, belo e sugestivo título. O primeiro volume, “Baú de Ossos”, havia sido publicado em 1972. O Proust brasileiro estava recontando, de algum modo, o século 20, com as cores da memória e, por que não?, da ficção. Na sua obra tudo é verdade, verificada e provada, mas verdade trabalhada pelos recursos da ficção. Sem a ficção, sem a elaboração literária, é provável que os livros deixassem no leitor a impressão de que se trata de registro de efemérides, ou, noutras palavras, relatórios provinciais. Ainda que os fatos não fossem verdadeiros, e para a maioria dos leitores isto certamente não importa tanto, as histórias, mesmo as comezinhas, são tão bem contadas que passam por alta ficção, quer dizer, por histórias inventadas. Pois, consagrado e amado pela crítica, inclusive pelo maior dos críticos literários brasileiros, Antonio Candido, Nava optou pelo suicídio, em praça pública.

A história do suicídio de Nava é relatada no livro “Minhas Histórias dos Outros” (Planeta, 270 páginas), do jornalista e escritor Zuenir Ventura. Num ensaio de 11 páginas, “Um suicídio mal contado”, Zuenir esmiúça a história da morte de Nava e os vícios típicos do jornalismo brasileiro. Na Europa e nos Estados Unidos, a imprensa tem por hábito, ou método, divulgar tudo ou quase tudo, inclusive sobre sexualidade, a respeito de personalidades públicas. Nos Estados Unidos fala-se até do priapismo e da ejaculação precoce do presidente John Kennedy. No Brasil, quando Ruy Castro citou o tamanho do pênis do jogador Garrincha, na magnífica biografia “Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha”, foi um deus-nos-acuda. O jornalismo patropi demorou anos para admitir que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mantinha um relacionamento extraconjungal com a jornalista Miriam Dutra, da TV Globo. FHC registrou Tomás, filho de Miriam Dutra, mas delicadamente, com o apoio da Rede Globo, exilou a mãe e o menino na Europa. Depois de um exame de DNA, descobriu-se que Tomás não é filho do príncipe dos sociólogos, que, decente, manteve a paternidade. O cuidado com a “honra” de FHC mostra que a mídia é protetora com os “seus”. Outros políticos, como Orestes Quércia e Fernando Collor, não mereceram a mesma consideração, ou melhor, proteção.

Com sua habitual precisão narrativa, Zuenir relata que, às 21h, um homem ligou para Nava. Transtornado, o escritor e médico disse para Nieta que “nunca tinha ouvido nada tão obsceno ao telefone”. Sua mulher entendeu que “parecia que ele tinha recebido alguma chantagem”. Nava pegou um revólver calibre 32 e saiu do apartamento. Depois de andar pelo bairro da Glória, “onde morava, foi visto sentado na calçada, cabisbaixo. (...) Às 23h30, junto a uma árvore, disparou um tiro na cabeça. Ia fazer 81 anos e era o nosso maior memorialista”, detalha Zuenir.

Zuenir era o diretor da sucursal da revista “IstoÉ” no Rio de Janeiro e contava com o apoio do subchefe, Artur Xexéo, e do repórter José Castello. Nava não deixou bilhete, mas um repórter gay, frequentador do bas-fond, informou às redações que o escritor havia se matado “porque estava sendo chantageado por um garoto de programa”.

Xexéo e Castello localizaram “Beto da Prado Júnior”, o garoto de programa que seria “amante” de Nava. “Era um cara feio, comprido, muito magro, com uma sunguinha vermelha apertada e um robe-de-chambre transparente preto, por cima — uma Madame Satã realmente horrorosa. (...) Devia ter menos de 30 anos. Bem moreno, não diria mulato, mas nos EUA ele seria crioulo”, diz Zuenir.

Beto disse que Nava visitava seu apartamento “uma vez por semana, às quartas-feiras, na hora de sua reunião no Conselho de Proteção ao Patrimônio Cultural do Rio”. “Ele dizia que ia para lá e vinha pra cá”, confidenciou o prostituto.

O garoto de programa disse que, a partir de certo momento, Nava, “apaixonado”, revelou sua identidade. Passaram a se encontrar mais vezes por semana — “e nem sempre para transar”.

Com a intimidade garantida, Nava teria sugerido que queria ver Beto e outro garoto de programa transando. Os jovens transaram e o memorialista comportou-se como voyeur. “A cena se repetiu outras vezes, sempre com o mesmo personagem, por exigência do cliente”, registra Zuenir.

O parceiro de Beto, ao descobrir a identidade de Nava, passou a chantageá-lo, segundo a versão do novo Madame Satã. “Pedro Nava, que mantinha Beto informado, entrou em desespero e se matou”, recorda Xexéo. O segundo garoto de programa, apurou Castello, de fato existia.

A versão de Beto parecia verdadeira. “Eu acreditei na história, pelo menos na transa entre os dois. O máximo de que desconfiei foi que pudesse ter inventado um terceiro elemento, quando era ele mesmo que fazia a chantagem. Mas da relação dele com o Nava, saí acreditando, não tinha dúvida”, diz Xexéo.

Na redação, Xexéo e Castello queriam publicar a história, mas Zuenir vetou. Xexéo praticamente discursou: “Se a versão está circulando pelas redações, se os jornalistas sabem, por que o leitor não pode saber? Esse Beto não presta, é um chantagista, é preciso que todo mundo saiba disso, inclusive a polícia, para ir atrás dele!” Castello, ouvido mais tarde por Zuenir, expôs sua posição: “Pode ter sido verdade, por que não? Um velho escritor solitário, aproximando-se da morte, acertando as contas com seus antigos fantasmas e mais secretos recalques era perfeitamente verossímil”.

O cartunista Ziraldo esteve na redação e, amigo de Nava e da turma mineira, disse, num tom de sugestão: “Mas vocês não vão publicar, não é?” Xexéo estrilou: “Por que Ziraldo pode ter o privilégio de ficar sabendo de toda a história e o leitor, por não ser amigo do Zuenir, não tem esse direito? Tem que publicar!” O criador do Menino Maluquinho definiu o que pensa sobre jornalismo, sobretudo quando os amigos são atingidos: “Há notícias que não precisam ser dadas, e a missão do jornalista não é dar todas as notícias”. Ele está errado? Pode ser. Mas é o que se faz todos os dias, no Brasil e no mundo. Ouvido mais tarde, o veterano editor de “O Pasquim” enfatizou: “Não acredito que as razões de um suicídio — que ia virar um escândalo — de um velho e respeitado personagem da cena brasileira, com sua viúva ainda viva, seus sobrinhos e parentes ainda chocadíssimos com sua morte, fossem um dever de jornalista”.

Zuenir, que era amigo da geração de Nava e num comedimento raro entre editores de jornais e revistas, frisou que “a fonte não era confiável”. Entretanto, para eximir-se de qualquer responsabilidade, enviou as informações para a sede da revista, em São Paulo.

Preocupado em não ser furado, ou talvez querendo apenas saber se a “Veja”, sempre mais agressiva, iria publicar a reportagem sobre o suicídio e o garoto de programa, Zuenir ligou para Flávio Pinheiro, chefe da sucursal da “Veja” no Rio. Pinheiro e seu subchefe, Dácio Malta, também ouviram Beto. Mas ficaram “inseguros para dar uma matéria baseada apenas naquele sujeito, mas muito impressionados. Por mais que ele tivesse um lado de bazófia, de exibicionismo, os indícios de que mantinha relações com Nava eram muito fortes. As indicações do jeito do escritor, da maneira de falar, a descrição das roupas (...) demonstravam intimidade”. A escritora Rachel de Queiroz, prima de Nava, disse, em 1998, à repórter Cynara Menezes, então na “Folha de S. Paulo”: “Ele se matou para não ser desmascarado por um sujeito que estava fazendo chantagem”. A autora de “O Quinze” respondeu à pergunta “Por que você não se refere à homossexualidade de seu primo Pedro Nava?”

Amigos de Nava, como Ziraldo, passaram a visitar as redações ou a ligar para repórteres e editores exigindo a não publicação. “Mos­travam-se mais preocupados em não deixar que saísse qualquer referência na imprensa à sexualidade de Nava do que em descobrir a causa do suicídio”, anota Zuenir.

Um dos principais editores brasileiros, José Mário Pereira, da Topbooks, contou que o escritor e jornalista Otto Lara Resende ligou e pediu para impedir que “O Dia”, veículo sensacionalista, publicasse a história. Pereira ligou para Ary de Carvalho, dono do jornal, que ordenou que a redação não divulgasse uma linha sobre o assunto.

Ricardo Setti, hoje na “Veja”, era redator-chefe da “IstoÉ” e “lamenta”, segundo Zuenir, “não ter se empenhado para mudar a decisão” de não publicar a motivação real do suicídio. “A direção suprimiu a versão da chantagem que, de forma resumida, a sucursal do Rio mandara.”

“Não tenho a menor dúvida de que violamos nosso dever de jornalistas e deixamos de cumprir nossa missão para com o leitor”, afirma, hoje, Ricardo Setti. “O preconceito foi mais social do que sexual. Poupamos o Nava por ele ser o Nava. Se fosse um modesto jogador de futebol ou cantor, teríamos publicado. Com a omissão de fatos absolutamente relevantes sobre o suicídio de uma figura pública, deixamos sem explicação, para os leitores, um acontecimento dramático que, sim, tinha uma explicação plausível”, disserta Setti, com a garantia da distância no tempo.

Humberto Werneck, que tem historiado a vida dos grandes autores mineiros e pesquisa a biografia de Manuel Bandeira, trabalhava na “IstoÉ” e garante que, se consultado, teria vetado a reportagem. Hoje, biógrafo respeitado e precisando de informações sobre vários autores, mudou de posição: “Sinto vergonha das futuras gerações, da geração de meus filhos, sinto vergonha do futuro biógrafo de Pedro Nava quando fosse remexer no assunto, já distante da circunstância: eu era jornalista naquele momento e fui a favor de sonegar ao leitor uma informação importante”. A verdade, quando não é nossa amiga, pode ser suprimida. Tratava-se de “um segredo de polichinelo”, admite Werneck. Quer dizer, quase todo mundo “que contava” sabia da história.

Zuenir cita o livro “A Solidão Povoada — Uma Biografia de Pedro Nava” (Nova Fronteira, 355 páginas), tese de doutorado da professora francesa Monique Le Moing. O livro escancarou, pela primeira vez e sem floreios, a homossexualidade de Nava. Zuenir não revela que a família Lacerda, dona da Nova Fronteira, perdeu o direito de editar Nava por causa do livro de Le Moing. Durante anos, a obra de Nava deixou de circular, sendo disputada aos tapas em sebos, a preços exorbitantes — até a publicação pela Ateliê Editorial, casa gerida pelo goiano Plínio Martins, professor da Universidade de São Paulo e diretor da Editora da USP (Edusp).

Le Moing mostra que, embora fosse um homem reservado, Nava era crítico da hipocrisia, dos preconceitos e dos tabus sexuais. “Todo mundo atravessa um período intersexual... a vida é foda: o resto é brincadeira”, dizia o escritor. Em 1983, Nava disse: “Sexualmente falando, sou extremamente liberal. Cada um tem o direito de fazer o que quer”.

No fim do texto, Zuenir teoriza: “O ‘caso Pedro Nava’ encerra uma das questões éticas mais complexas do jornalismo: os limites entre aquilo que é público e cujo conhecimento é um direito de todos — e um dever do jornalista divulgar — e o que, por pertencer à esfera privada, deve ser mantido como tal. Nava era um homem público que escolheu uma via pública para praticar um gesto que, ele sabia, teria repercussão, chegaria à imprensa e seria investigado em suas causas e motivações. O ato final de sua tragédia foi exposto como um espetáculo de rua”.

As revelações acima melhoram ou pioram o homem Nava e sua obra? Nenhuma coisa nem outra. Apenas mostram que Nava é um homem como qualquer outro, rico em ambiguidades. Sua obra permanece sólida. Ele é mesmo o Proust dos trópicos — um autor que cresce com o passar do tempo e que merece um lugar de honra entre Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. “Entre” e não “abaixo de”. Trata-se de um autor que ainda não foi devidamente esmiuçado pela crítica literária e por historiadores. Nava é uma obra aberta como homem e escritor.

Extraído do sítio da Revista Bula

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