22 de abril de 2012

O DOM QUIXOTE QUE VIVEU EM MIGUEL CERVANTES - Milton Ribeiro


As mortes de Cervantes e Shakespeare teriam ocorrido no mesmo dia e no mesmo ano, em 23 de abril de 1616. A fim de homenagear este dois imensos nomes da literatura de todos os tempos, em 1995, a XXVIII Conferência Geral da UNESCO escolheu o dia 23 de abril como o Dia Internacional do Livro e dos Direitos Autorais. Também era homenageado outro escritor falecido naquela popular data de 1616: o historiador peruano Inca Garcilaso de la Vega, dito o “príncipe dos escritores do novo mundo”.

Porém, a verdade não é bem esta, pois Cervantes morreu em 22 de abril, sendo sepultado no dia 23, e Shakespeare faleceu em 23 de abril de 1616, mas segundo o calendário juliano, que corresponde a 3 de maio no calendário gregoriano — utilizado por nós. Portanto, do ponto de vista temporal, morreu onze dias depois de Cervantes. O 23 de abril é bastante frequentado por escritores famosos: William Wordsworth, por exemplo, grande poeta romântico inglês, também morreu num 23 de abril, só que 1850.

Deste modo, se formos rigorosos, concluímos que a data da morte de Cervantes foi um 22 de abril como este domingo e a de Shakespeare um 3 de maio de 1616, apesar da lenda. Só o peruano Garcilaso de la Vega perdeu a vida na data da Unesco. Até Millôr Fernandes fez confusão, escrevendo certa vez: “Você sabia que Cervantes morreu no mesmo dia da morte de William Shakespeare? Evidentemente, como a TV Globo não existia, os dois morreram sem tomar conhecimento um do outro”. Com Globo ou sem Globo, o fato é que as mortes não foram no mesmo dia e que o Sul21 homenageia Cervantes no dia correto de sua morte, 22 de abril.

Uma biografia sensacional, ou no mínimo, muito particular

Miguel de Cervantes: litogravura de
 autor desconhecido
Sabe-se bastante da vida de Miguel de Cervantes Saavedra depois que ele escreveu Dom Quixote. Antes disso, sua biografia apresenta largos períodos sem notícias. A começar pelo próprio nascimento do autor. Há indícios de que nasceu em seu onomástico, em 29 de setembro. O que é certo é que foi batizado em 9 de outubro de 1547. Também existem dúvidas sobre onde teria estudado e se. Sabe-se que era alguém muito indisciplinado, agitado e boêmio, envolvido em querelas e guerras.

Na verdade, sua vida foi espetacular. Após um duelo onde feriu seu oponente, fugiu em 1569 para onde hoje é a Itália, a fim de servir como soldado. Na Batalha de Lepanto, em 1571, lutando ao lado da Santa Liga (República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e Estados Pontifícios), perdeu os movimentos da mão esquerda ou toda a mão, segundo outros. Em 1575, participou da expedição contra Túnis. Preso por um corsário árabe, passou cinco anos na prisão em Argel, junto com um de seus irmãos. Fugiu 4 vezes, cada fuga com sua história: na primeira vez é apanhado e posto em um confinamento mais severo. Então, sua família reúne algum dinheiro para a fiança, mas o dinheiro só é suficiente para resgatar um dos irmãos e Cervantes prefere dar a liberdade a Rodrigo. Então, libertado, este contrata uma embarcação para libertar Cervantes, mas acaba preso novamente. Na terceira tentativa, Cervantes é encontrado dias depois e acaba fechado 5 meses no banheiro da cela! Na quarta vez, tenta subornar um mouro para facilitar-lhe a fuga, mas é delatado. Como pena, o Sultão de Argel o manda para uma prisão em Constantinopla. Mas, antes da viagem, dois frades espanhóis organizam uma expedição à África e conseguem, com auxilio da família Cervantes, pagar seu resgate.

Ainda serviu nas campanhas de 1581 a 1583, na expedição que Filipe mandou aos Açores, contra o prior do Crato, que pretendia o trono de Portugal: e é por essa data que dirige galanteios a uma dama portuguesa 22 anos mais jovem e de quem teve sua única filha, D. Isabel de Saavedra. Só após o nascimento, em 1584, é que desposou legitimamente D. Catarina de Palácios Salazar y Vosnediano, dama de linhagem fidalga.

De volta à Espanha, escreve cerca de 30 peças de teatro e seu primeiro livro, A Galateia (1585). Sem êxito e cometendo todos os excessos retóricos que depois condenou em Dom Quixote, passou a trabalhar como coletor de impostos. Em 1597, é preso por dívidas e tudo indica que foi na prisão que começou escrever a primeira parte do Quixote.

O Quixote

Gravura de Cândido Portinari
 do Quixote
El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é, de forma chocante, diferente de tudo o que se tinha publicado até então, mesmo Cervantes. O romance fala mal dos romances de cavalaria, a moda da época, histórias totalmente fantasiosas de grandes feitos. Os cavaleiros, super-heróis da Idade Média, saiam pelo mundo corrigindo as injustiças e obtendo coisas absolutamente impossíveis, mais ou menos como Batman ou Rambo fazem hoje. Para atacá-los – pois uma ideia genial pode nascer da vontade de vingança – Cervantes traz à tona um grande leitor destes livros: um fantasioso, louco e esquálido herói que sai ao mundo para corrigi-lo, cheio de boas e nobres intenções, um personagem que fará rir a todos, desde os literatos até a lírica donzela da Andaluzia que só sonhava com barões e nobres. Acompanha-o uma figura baixa, gorda e realista, que passa o tempo todo tecendo críticas ao sublime e ridículo Cavaleiro da Triste Figura. Com seu cavalo Rocinante e a a musa Dulcineia, estava criado o mais engraçado e melancólico dos romances.

(…) D. Quixote perguntou a Sancho por que motivo lhe ocorrera chamar-lhe “Cavaleiro da Triste Figura”, naquela ocasião precisamente.

— Eu lhe digo — respondeu Sancho —, é porque o estive observando à luz da tocha que vai na mão do mal andante cavaleiro, e deveras reconheci em Vossa Mercê a mais má figura que nunca vi; do que deve ter sido causa ou o cansaço deste combate ou talvez a falta dos dentes queixais.

Outra gravura de Doré para os fantasmas que habitavam a mente do Quixote
A fantasia do Quixote forma gloriosa e minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição de Quixote ao senso comum de Sancho que está boa parte da riqueza do livro. A incrível capacidade do Quixote de adaptar-se às péssimas circunstâncias e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a acreditar que haja outro — e talvez melhor — senso, a lutar contra o marasmo e o comum. Mas não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente correto ou como “um representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar oportunos adágios populares ou outros, criados por Cervantes.

O livro, publicado em 1605, fez estrondoso sucesso. Tanto que recebeu uma continuação apócrifa, assinada por um inexistente Alonso Fernández de Avellaneda, que demonstra total incompreensão dos personagens cervantinos e não pode ser comparado com o original. Em 1615, Cervantes publicou o segundo tomo, onde o falso livro de Quixote é citado no prólogo.

VALHA-ME DEUS, com quanta vontade deves estar esperando agora, leitor ilustre, ou plebeu, este prólogo, julgando achar nele vinganças, pugnas e vitupérios contra o autor do segundo D. Quixote; quero dizer, contra aquele que dizem que se gerou em Tordesilhas e nasceu em Tarragona. Pois em verdade te digo que te não hei-de dar esse contentamento, que, ainda que os agravos despertam a cólera nos mais humildes peitos, no meu há-de ter exceção esta regra. Quererias que eu lhe chamasse asno, atrevido e mentecapto; mas tal me não passa pelo pensamento…

Se o primeiro volume já era extraordinário, a continuação é ainda melhor e, ao final deste livro, o autor mata o Quixote para que seja evitada nova continuação.

Cervantes é o fundador do romance moderno. No Quixote há personagens representando ideias e as situações falam por si, sem a necessidade de maiores explicações do autor. Atualmente, talvez o livro soe verboso e com longos trechos desnecessários, mas ainda não foi inventado símbolo melhor do espírito idealista e aventureiro do ser humano.

O Dom Quixote de Picasso
Durante o Fórum Social Mundial de 2005 falou-se muito no Quixote como representante de uma utopia. Isto é um grande erro que foi apontado por José Saramago, presente ao evento. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), segundo Thomas Morus, é um local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz. Ironicamente, também significa não-lugar ou lugar nenhum… Esta definição não possui nada em comum com a história do Engenhoso Fidalgo, um personagem que aplicava a fantasia para transcender a circunstâncias imediatas e que era destituído de projetos para si ou seu país ou, melhor dizendo, que refazia seu projeto cada vez que pensava ou via algo que o interessasse.

(Também é genial seu livro de 1613, Novelas exemplares, conjunto de doze narrativas breves de caráter didático e moral que podem servir de introdução ao mundo cervantino. Cervantes se ufanava, no prólogo, de ter sido o primeiro a escrever, em castelhano, novelas ao estilo italiano:

A isto se aplicou meu engenho, por aqui me leva minha inclinação, e mais que dou a entender, e é assim que sou o primeiro que novelei em língua castelhana, que as muitas novelas que nela andam impressas, todas são traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são minhas próprias, não imitadas nem furtadas; meu gênio as engendrou, e pariu-as minha pena, e vão crescendo aos braços da imprensa.

Elas são habitualmente agrupadas em duas séries: as de caráter idealista e as de caráter realista.)

Como dissemos, o êxito de Dom Quixote, apenas apareceu, foi colossal. A glória e a fama que Cervantes obteve em vida foi imensa para a época. No primeiro ano esgotaram-se quatro edições. O pequeno mundo literário espanhol estava em êxtase. Todos queriam conhecer Cervantes, todos o felicitavam: o conde de Lemos proclamava-se, orgulhoso, seu amigo e mecenas. Os estrangeiros, como os franceses que vieram na comitiva do embaixador de França à corte de Espanha para tratar das núpcias do príncipe francês com a infanta espanhola, solicitaram, como graça excepcional, o favor de serem apresentados a ele. Era a glória, aquela que ele procurara nos acampamentos e nos teatros.

Cervantes reformou o gosto do público que, após o Quixote, nunca mais foi o mesmo. Ele fez ruir um mundo numa risada colossal. E um novo caos surgiu.

Pintura: Juan de Jáuregui
Abaixo, a versão de Dom Quixote para apressadinhos, publicada no blog Ler antes de morrer:

Extraído do sítio Sul21

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