29 de abril de 2012

'A OBRA DE PESSOA É UM TESTAMENTO À ESPERA DE SER ABERTO' - Telma Miguel


São quase 700 páginas de uma obra monumental que começou com uma ambição muito simples. «O livro sobre o Fernando Pessoa que eu queria ler ainda não estava escrito», conta José Paulo Cavalcanti Filho, advogado pernambucano muito bem sucedido, ex-ministro da Justiça de José Sarney e que dedicou «quatro horas todos os dias durante oito anos» a perseguir o fantasma de Fernando Pessoa e a fazer o retrato minucioso e exaustivo do homem que o Brasil idolatra e Portugal nem tanto.

'Fernando Pessoa – uma quase auto-biografia' (Porto Editora), obra recentemente lançada em Portugal e editada no ano passado no Brasil, venceu este mês, «contra 73 biografias inscritas», o Prémio da Bienal de Brasília, um dos três grandes prémios editoriais brasileiros.


Até ao fim do ano falta anunciar o Jabuti e o da Academia de Letras Brasileira. Desta nova biografia, mais uma vez feita por um estrangeiro, sobressai uma teoria eventualmente polémica: a vida e a obra em Fernando Pessoa confunde-se mais do que aquilo que se imaginava, porque ele escreveu sobre o que estava à sua volta.

O livro do brasileiro, um coleccionador obsessivo de tudo o que existe de Pessoa, parte de uma investigação quase detectivesca e lê-se como um romance. Nele, Cavalcanti contabiliza 127 heterónimos criados pelo poeta (alguns meros esboços), inclui receitas culinárias, escrutina o romance com Ofélia, a criação de heterónimos, explica os dias de Pessoa passo a passo, quase cronometrados, cruzando esses dias com a criação literária e com a História, desde o 13 de Junho de 1888 em que nasceu no Largo do São Carlos, em Lisboa, até à morte no Hospital São Luís dos Franceses, e produz revelações.

José Paulo Cavalcanti Filho veio 30 vezes a Portugal no decurso das investigações. Um projecto de peso que agora está disponível para ser absorvido e julgado pela pátria de Pessoa.

Porque fez este livro?

A obra de Fernando Pessoa está muito bem estudada por um conjunto de autores, sobretudo portugueses. Mas o homem, eles abandonaram. Octavio Paz diz que perante a insignificância da vida, a obra é toda a vida. Isso é verdade, mas não inteiramente. Porque por trás da obra há um homem que trabalha, que sonha, que tem desassossegos.E quem era ele? Fui à procura desse fantasma. Onde está a tabacaria da Tabacaria? Sempre quis saber essas coisas. Em conversa com a editora disse: eu quero ler um livro que não existe. Então vamos fazer esse livro, disse ela. Entre o vamos e a publicação passaram dez anos.

Dez anos intensivos?

Mudei a minha vida.Durante oito anos, trabalhei quatro horas todos os dias, ninguém vai acreditar. Nos jornais só lia as manchetes e a página de opinião, deixei de sair do escritório para almoçar e evitava o trânsito. Durante 30 anos sempre li depois do jantar e tocava piano 15 minutos. Deixei isso. E trabalhava até não conseguir ler, na obsessão e na alegria. Cada pequena descoberta era um êxtase. Há dois grupos de pessoas: os felizes e os desesperados. Os felizes marcam uma data para acabar e acabam, os desesperados querem sempre fazer o seu melhor, até ao impossível. Eu sou desses.

Como recolheu a informação?

Há muitos textos e depois tive acesso a fontes menos valorizadas, como os jornais e depoimentos de muita gente, anónimos...

Entrevistou o filho do barbeiro que no último ano ia ao quarto dele fazer-lhe a barba...

Com ele e com o Carlos bate-chapas passei tardes recordando histórias. Contavam-me a maneira de andar, os hábitos. Fui tirando das cinzas pequenos factos para construir uma imagem. E o Ernesto Martins, dono da Biblarte, um alfarrabista, contou-me uma história que foi fundamental. Numa tarde de muito calor, convidou-me para ficar com ele a conversar enquanto durante uma hora e meia eu fumava um charuto. Ele contou-me que no tempo do anterior dono, Eliezer Kemenezk, um judeu russo a quem o Martins comprou o negócio, o Pessoa ia para lá aos fins de tarde, completamente embriagado, dormir uma sesta para aguentar as noitadas. Deitava-se numa cave mínima numa cama de arames. O russo pagava-lhe 20 escudos para ele traduzir pequenos poemas que escrevia. E eu perguntei: ‘Martins porque você nunca contou isso?’ Ao que ele respondeu: ‘Porque nunca ninguém me perguntou’. Uma resposta tipicamente portuguesa, o tipo de resposta que fui encontrando nas minhas pesquisas. No livro assinado pelo Kemenezky, Alma Errante, percebe-se que dos 55 poemas, de certeza 37 são do Pessoa. Um livro a mais do Pessoa. Imagina!

Qual foi a fonte mais importante?

A maior de todas descobri num momento mágico. É a seguinte: 100% dos textos do Pessoa eram criados com o que estava à volta dele. A obra de Pessoa é um testamento esperando que alguém o desvende. Que esperou 70 anos. ‘Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez eu fosse feliz’, escreveu. Essa é uma ideia recorrente na literatura: ‘Se eu tivesse uma vida mais simples seria feliz’. Mas Pessoa não escreve de forma abstracta. Era só procurar a filha da lavadeira. E havia a lavadeira Irene, que tinha uma filha, Guiomar, por quem Pessoa se sentiu atraído.

Todas as personagens que criou nos poemas têm existência real?

Estão em volta dele, ou são inspiradas nele, ou são amigos, ou são admirações literárias. O Álvaro de Campos, o seu heterónimo mais famoso, tinha este apelido porque um dentista que o Pessoa achava que era um sósia seu chamava-se Ernesto de Campos. Álvaro de Campos é de Tavira, terra do avô paterno de Pessoa, nasceu (de acordo com a biografia que o poeta lhe atribuiu) a 15 de Outubro, que é a data de nascimento de Nietzsche e Virgílio. E era engenheiro naval, tal como o genro da sua Tia Anica, com quem o poeta viveu uns tempos. E Álvaro de Campos escreve como se fosse homossexual, porque o próprio Pessoa tinha uma natureza homossexual. Só que a partir do momento em que Pessoa conhece Ofélia Queiroz, e começa um namoro com ela, os textos de Álvaro de Campos vão-se transformando. A certa altura, o engenheiro naval aparece casado, com a mulher ao lado a fazer tricô. Quando você não conhece a vida dele não percebe essas ligações.

Tem dito, e escreveu no livro, que Pessoa é um poeta sem imaginação. Nesse caso como é que se compreende o génio?

Digo isso como uma provocação, porque Pessoa é um génio absoluto. Ele compõe é com o que tem por perto, cria um delírio poético à volta disso.

Outra coisa que se percebe é que até para o seu tempo ele era muito pouco viajado. Desde que regressou de Durban só saiu uma vez de Lisboa, para ir a Portalegre, e poucas deslocações a Cascais.

Ele viveu em quatro quilómetros quadrados. Porquê, não sei. Talvez porque fosse enormemente discreto e tímido. E era também muito delicado, não gostava de aborrecer ninguém.

E, de certa forma, um homem vaidoso, segundo descreve.

É irónico. Ele era míope, com receita médica de 12 dioptrias, mas usava óculos de três para não ficar com os olhos pequenos por causa das lentes grossas, e por isso aceitava ver tudo desfocado ao longe. Mandava fazer os fatos nas alfaiatarias mais caras de Lisboa, embora não tivesse dinheiro para os pagar. Usava um anel de prata com o brasão da família. Há um texto em que se fala de uma sapataria Contexto. Pedi ao historiador português que contratei para fazer pesquisa, o Victor Eleutério, para procurar essa sapataria. O Victor dizia que essa sapataria nunca existiu. Mas insisti e ele procurou todas as referências na Baixa. Eu tinha a certeza que essa sapataria teria existido e era na Baixa porque, embora sempre falido, ele não comprava na periferia. Só na zona mais cara. Então a sapataria era a Contente, a mais famosa de Lisboa nos anos 20. O nome tinha sido impresso com uma gralha.

Descobriu mais imprecisões biográficas desse género?

A tabacaria de que ele fala diziam que era a Morgadinha. Fui ver na conservatória e a Morgadinha tinha sido criada em 1958 e o poema Tabacaria escrito em 1928. E o poema não foi escrito na casa onde vivia, mas na mansarda da casa Moitinho, onde ele fazia serviços de correspondente estrangeiro.

E como causa de morte, também acrescenta um dado novo...

Dizia-se que ele morreu de cirrose. Eu criei uma junta médica. Fiz um calhamaço com todos os textos em que ele falava das dores e doenças e reuni os professores de Medicina mais importantes da minha terra, para sessões aos sábados na minha casa. Foram reuniões mastodônticas examinando e discutindo toda a documentação. Até que se chegou à conclusão mais plausível de que Pessoa morreu de pancreatite. Reuni com psicanalista para tentar saber se ele era louco. Fiz tudo para chegar o mais perto possível da verdade.

E a questão sexual? Pessoa morreu virgem?

É o mais provável. Ele nunca teve mulher, ou homem. Acho que era mais ou menos óbvia a natureza homossexual, mas não existe uma foto, um depoimento, nada que o explicite. Quem sabe se hoje, com outros padrões morais fosse diferente. No entanto, ele tinha vários amigos homossexuais assumidos e publicou com dinheiro dele, na Olissipo, livros de dois: o Raul Leal e o António Botto.

Também refere que ele tinha vergonha do próprio corpo e qualquer relação não seria nunca consumada.

Tenho a minha explicação, que está escrita no livro. Mas a minha mulher pediu-me para omitir isso nas entrevistas. Procurei a exactidão humanamente possível. Por exemplo, duas cartas de Ofélia foram censuradas pela família. Nunca foram publicadas.

Chegou a vê-las?

Dediquei 15 dias a descobrir as cartas. Era importante lê-las, podia haver um assunto delicado, um aborto, por exemplo. Mas era, tão só, ela a contar que tinha passado mal a noite, com aquela ‘doença mensal’ das mulheres. Eu quase me mato.. quando vi que era assim tão irrelevante. Mas tinha que ler, então há duas cartas censuradas e ninguém vai ler?

Fez também uma busca das cartas escritas a Sá-Carneiro.

Mário de Sá-Carneiro escreveu 216 cartas a Pessoa, que são conhecidas, e Pessoa escreveu-lhe, para Paris, de 100 a 150, que nunca foram encontradas. Um amigo em Paris falou com a actual proprietária da pensão onde Sá-Carneiro se suicidou, uma marroquina de 82 anos. A dona da pensão disse-lhe que tinha uns papéis numa língua que não percebia. Corri para Paris. Fui ver as cartas e não eram. Já pensou se fossem? Ninguém foi ver. As pessoas são muito descansadas. É preciso um obsessivo como eu. (risos)

Mas houve acasos mais felizes.

Há uma história que me foi comunicada, como por destino, por um director da Globo que veio a Portugal em 1985 tentar entrevistar Ofélia, pelos 50 anos da morte de Fernando Pessoa. Ofélia não aceitou dar entrevista, mas contou uma história maravilhosa, pedindo que ela só fosse divulgada depois de morrer. E esse director da Globo acabou por nunca ter encontrado uma oportunidade de publicar isso. A história que conto no livro é, segundo as próprias palavras de Ofélia, o capítulo final do romance dela com Pessoa. Uma coisa de um romantismo incrível. Que é a de ela ter passado toda a noite segurando a mão dele, já morto no hospital, falando de tudo o que tinha ficado por dizer. Sozinhos os dois até ao nascer do dia.

Ideologicamente, ao contrário de um certo mito que surgiu após o 25 de Abril, Pessoa não era fascista...

Os poemas que ele dirigiu a Salazar são arrasadores. Há um famoso, escrito pelo heterónimo que criou, Um Sonhador Nostálgico do Abatimento da Decadência, que é uma crítica impressionante.

A partir de certa altura Pessoa caminhou para a autodestruição. Recusou o amor, fechou-se nele próprio e bebeu desesperadamente. Porquê?

Podemos discutir se ele queria mesmo matar-se. Mas de certeza já dava muito pouco valor à sua vida. O momento em que se percebe que ele desaba foi quando perdeu o concurso para o Museu de Cascais, em 1932. Nessa altura devia mais de um ano, bebia muito. Chegou a ter delirium tremens. Há um estudo de Francisco Ferreira em que foi feita uma contabilidade do consumo diário de álcool.

Chegou a comprar alguma coisa do Pessoa?

Eu tenho tudo. Só não tenho os manuscritos, porque o Governo português nos leilões exercia o direito de preferência. Mas tenho todas as primeiras edições das obras, revistas, os artigos de jornais, os livros que publicou na Olissipo. Tenho uma Mensagem anotada por ele, tenho todos os manifestos, os objectos pessoais, colecção de selos, a biblioteca pessoal dele, fotos dele e da família. Tenho os óculos que usava. E tenho o retrato que Almada Negreiros fez, no dia do funeral, e que ofereceu a Ofélia Queiroz. A arca, que é actualmente de um particular, gostava de comprar para doar à Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

telma.miguel@sol.pt

Extraído do sítio Sol.pt

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