9 de abril de 2012

UMA CARTA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO A MANUEL BANDEIRA - Euler de França Belém

Numa carta ao poeta Manuel Bandeira, o poeta João Cabral de Melo Neto reflete sobre a acomodação da crítica literária, fala de uma intriga com Carlos Drummond e revela-se comprador de desenhos de Picasso e Van Gogh 


Meu caro Manuel,

Muito obrigado pelas suas palavras sobre o meu livro. E pelas do Vinícius [de Morais], transcritas por você. Ainda não recebi carta dele, nem o texto de Cordélia e o peregrino (1) que lhe havia pedido — para imprimir.

Infelizmente muito poucos parecem ter gostado do livro. Como, aliás, dos meus anteriores. Tanto que, não fosse minha resolução de me calar em poesia, estaria disposto a fazer Odorico Tavares (2), Alphonsus de Guimaraens Filho (3), J.G. de Araújo Jorge (4)...

Nossa crítica é um caso impressionante de “sensibilidade habituada”. Você já reparou na maneira como cada geração, no Brasil, ao se impor, traz seu crítico e abandona o anterior? O caso de Tristão de Ataíde (5), por exemplo, que nunca percebeu os nossos romancistas, é típico. O que vale é que esses críticos posteriores não negam a sensibilidade anterior; pelo contrário, incorporam-na a uma região nova, que eles trazem e que termina sendo hábito também. Isso, por exemplo, é que permite um Álvaro Lins (6) topar sua (de você) poesia. Talvez v. me pergunte o que eu chamo de sensibilidade habituada. Começo definindo negativamente: quando v. sentiu no primeiro livro do Mário de Andrade um “ruim diferente”, havia um caso de sensibilidade não-habituada; e positivamente: quando certo crítico de muitas campanillas (7) (que é como se diz aqui dos toureiros da moda) aconselhou a Clarice Lispector que não publicasse seu primeiro livro, do qual, depois da aceitação dos não-habituados, acabou por escrever grandes elogios — se dava um caso de hábito de sensibilidade (como podia o crítico gostar de um romance “psicológico” se não estava dentro das conhecidas maneiras de Lúcio Cardoso (8) ou Graciliano (9) ?).

Muito tempo pensei que não poderia haver hábito de sensibilidade e que a sensibilidade é coisa tão poderosa que acabaria vencendo qualquer deformação; nos casos onde parecia haver a coisa, passava eu a pensar, simplesmente, que o que não havia era sensibilidade. Creio que esta teoria é válida para certos críticos. Mas, hoje, prefiro pensar que existem realmente diferenças. Sabia v. que Renoir (10) declarava serem As flores do mal (11) o livro mais detestável do mundo?

Me desculpe o tamanho de minhas cartas. Mas acontece que aqui não tenho oportunidade de conversar sobre essas coisas ao menos fluentemente. Tenho muitos amigos, já, mas com eles tenho de conversar num engasgado castelhano que não me permite esses desabafos inconsequentes de uma boa conversa.

Junto lhe mando mais folhas do exemplar aéreo do Mafuá. Independente disso, mandarei, via aérea, um exemplar verdadeiro, logo que o livro esteja pronto. Espero terminá-lo esta semana. Se v. se admira da demora, dou-lhe a razão: estive um mês doente de icterícia, sem poder trabalhar. Mas já voltei à ativa e espero ter o livro concluído e despachado, antes do nascimento do meu segundo garoto (esperado para depois de 20 deste). Isto me obrigaria a interromper o trabalho mais uma vez, coisa que não desejo. V. já esperou demais.

Oportunamente, lhe informarei da maneira da remessa do livro. Não repare muito, quando o tenha em suas mãos, nos defeitos. Pensei que fosse fácil imprimir e, só agora, que o estou fazendo aceitavelmente, compreendo que fiz mal em lhe pedir, tão cedo, seu livro. À custa dele (e v. poderá ver o que digo no curso das páginas) é que aprendi a imprimir — o que não está direito nem é decente. Espero, contudo, que v. não rompa relações com o editor.

Terminando o seu, vou fazer a impressão das traduções de Baudelaire (!!!) feitas pelos prezado (...) chefe (12). Tenho também um poema do Teodomiro Tostes (13) para fazer (e que farei simultaneamente). O Vinícius é que se esqueceu de mandar Cordélia. E o Carlos Drumond, depois de mais de um ano de minha saída do Rio, nunca encontrou um minuto para me responder. Confesso que esse procedimento, da parte dele, que sempre tive por meu amigo, me espanta. Só uma razão posso dar: alguma intriga. Mas quem teria interesse nisso?

Aqui, tenho tido oportunidades fabulosas de comprar algumas pinturinhas. Conheço um imbecil amigo do marechal Pétain (14), e a quem procuram todos os refugiados franceses quando necessitam de gaita. Tenho podido comprar, assim, desenhos de Picasso (15), Modigliani, Van Gogh; um pastel de Degas, um pequeno óleo de Bonnard. Tenho em negócios um curiosíssimo desenho do Douanier e um pequeno óleo de Manet. Mas não pudemos ainda chegar a um acordo em questão de preços. Para que o Manet não fosse parar em mãos estranhas, sugeri ao Osório (16) que o comprasse. Ele o viu, disse que gostara, mas não quis comprar a pintura porque, na hora de fugir para cá, o proprietário cortou a pintura (que se mantém intacta) do chassis. Por isso, ele disse o que o quadro estava defeituoso...

Bom, meu caro Manuel, até a próxima. Receba um abraço do amigo e admirador.

João

Notas:

1 — Cordélia e o peregrino, poema dramático escrito por Vinícius em 1936, paralelamente aos textos que compõem "Cinco Elegias" (1943), mas que seria publicado apenas em 1965, em edição patrocinada pelo Ministério da Educação e Cultura.

2 — Odorico Tavares (1912-1980), poeta e jornalista pernambucano, autor de "26 Poemas" (1934), 'A Sombra do Mundo" (1939), "Poesias" (1945).

3 — Alphonsus de Guimaraens Filho, nascido em 1918, poeta mineiro, autor de "Lume de Estrelas" (1940), "Poesias" (1946), "A Cidade do Sol" (1949), dentre outras obras, redator do "Diário da Tarde" e de "O Diário", em Minas Gerais, assessor direto da Presidência da República durante o governo de Juscelino Kubitschek.

4 — J. G. de Araújo Jorge (1914-1987), poeta de obra vasta e grande popularidade, deputado, ficcionista, autor de "Meu Céu Interior" (1934), "Amo!" (1938), "Poemas de Amor" (1947), "Harpa Submersa" (1957), dentre outros títulos.

5 — Tristão de Ataíde era o pseudônimo de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), crítico, professor de literatura brasileira, líder católico, colaborador de "O Jornal", do "Jornal do Brasil", do "Diário de Notícias", autor de cinco séries de "Estudos" (1927-1933), de "Contribuição à História do Modernismo" (1939) e "Quadro Sintético da Literatura Brasileira" (1956), dentre outras obras.

6 — Álvaro Lins (1912-1970), crítico literário, jornalista, professor do Colégio Pedro II, foi, durante dez anos, o responsável pelos rodapés literários do jornal carioca "Correio da Manhã", reunidos, em livro, em oito séries do seu "Jornal de Crítica" (1941-1963).

7 — De campanillas ou de muchas campanillas, expressão popular castelhana que designa pessoa de grande autoridade ou circunstâncias muito relevantes.

8 — Lúcio Cardoso (1913-1968), ficcionista e dramaturgo, marcado pela dominância introspectiva, exemplar em romances como "A Luz no Subsolo" (1936), "Mãos Vazias" (1938), "Crônica da Casa Assassinada" (1959).

9 — Graciliano Ramos (1892-1953), romancista, autor, dentre outros livros, de "Caetés" (1933), "São Bernardo" (1934) e "Angústia" (1936), obras que Cabral parecia ter em mente ao sublinhar o dado psicológico no escritor.

10 Trata-se do pintor Pierre Auguste Renoir (1841-1919).

11— Com relação à referência a "As Flores do Mal" (1857), de Charles Baudelaire (1821-1867), talvez se possa lembrar a resposta de Cabral a Ivan Cardoso, em 1987, sobre o livro que o acompanharia se fosse para uma ilha: “Talvez eu me satisfizesse levando Baudelaire”.

12 — Referência às traduções de Baudelaire realizadas por Osório Dutra.

13 — Teodomiro Tostes, poeta, autor de "Novena à Senhora da Graça" (1928), jornalista, diplomata, escritor modernista gaúcho, do grupo que se reunia em torno do bar Antonello, em Porto Alegre, do qual faziam parte também Augusto Meyer e Érico Veríssimo.

14 — Philippe Pétain (1856-1951), militar e político francês, embaixador em Madri em 1939 , chefe do Estado francês durante a ocupação alemã.

15 — Cabral refere-se aos pintores Pablo Picasso (1881-1973), Amedeo Modigliani (1884-1920), Vincent van Gogh (1853-1890), Edgar Degas (1834-1917), Pierre Bonnard (1867-1947), Henri Rousseau, o Douanier (1844-1910) e Édouard Manet (1832-1883).

16 — Osório Dutra.

(A carta foi extraída do livro “Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond”, organização, apresentação e notas de Flora Süssekind, Editora Nova Fontreira/Edições Casa de Rui Barbosa).

Extraído do sítio da Revista Bula

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