6 de abril de 2012

A ALMA DA MÚSICA BRASILEIRA - Ana Ferraz

Criador inspirado e exímio na
técnica, Nazareth fazia a  ponte
entre o erudito e o popular.
 Foto: Acervo pessoal de Alexandre
 Dias
Sempre que os Monteiro decidiam dar uma festa em seu palacete na Rua Mata Cavalos, no Rio de Janeiro, contratavam uma pequena orquestra. Num desses costumeiros bailes, o pianista habitual adoeceu. Ao notar o substituto, muito retraído, a dona da casa quis saber de quem se tratava. Era Ernesto Nazareth. O talento do jovem impressionou de tal forma que passou a ser ele o eleito para animar os famosos saraus. Frequentador habitual dos encontros literários também ali promovidos, um taciturno senhor sempre que podia se achegava ao pianista e lhe pedia que tocasse algo de Schumann. Logo que a melodia invadia a sala, cruzava as pernas e punha-se a sacudir o pé. Não no compasso da música, mas a indicar uma emoção raramente nele exibida. O convidado que rivalizava com Nazareth na timidez se chamava Machado de Assis. 

A deliciosa história, narrada por Célio Monteiro, neto da dama do palacete, em carta até agora inédita, é uma das preciosidades a que o público passa a ter acesso com o lançamento do site www.ernestonazareth150anos.com.br. Iniciativa do Instituto Moreira Salles, guardião do acervo do músico, o endereço na internet -propõe-se a ser um alicerce para quem busca saber mais sobre o compositor, que na definição de Heitor Villa-Lobos foi a verdadeira encarnação da alma musical brasileira.

Nos bastidores dessa empreitada musical estão três apaixonados pelo personagem nascido em 1863 no Morro do Nheco, hoje o bairro carioca de São Cristóvão. Especialista na obra de Ernesto Nazareth e coordenador do site, o pianista e pesquisador Alexandre Dias acredita que o compositor ainda precisa ser descoberto pelo grande público. “Todo mundo conhece Odeon, mas nem todos sabem quem é o autor.” Para Paulo Aragão, violonista, arranjador e idealizador do portal, trata-se da chance de reunir toda a obra de Nazareth. “Nos espanta ainda haver composições inéditas, completamente esquecidas, algumas jamais gravadas. Vamos oferecer a obra original, acesso às 211 partituras, na versão melodia e cifra, para consulta e down-load. Um só lugar reunirá manuscritos, informações biográficas, textos exclusivos sobre cada composição e documentos. Todas as gravações de obras de Nazareth já feitas no mundo estarão disponíveis.”

Bia Paes Leme, coordenadora do acervo musical do Instituto Moreira Salles, frisa que o portal, que conta com a parceria do endereço www.musicabrasilis.org.br, iniciativa da cravista e pesquisadora Rosana Lanzelotte, já parte de um rico material. Mas amplia a iniciativa. “Queremos incentivar o intercâmbio, ser um lugar em que tanto o músico quanto o curioso se sintam à vontade. Vimos concebendo esse sonho há tempos e por isso resolvemos antecipar o lançamento do sesquicentenário. É nossa contagem regressiva.”

O terceiro “pai” do portal é Luiz Antonio de Almeida, há 36 anos a se debruçar sobre seu personagem. Na gaveta, tem pronta Ernesto Nazareth, Vida e Obra, alentada biografia à espera de editora. Almeida -ocupa lugar privilegiado entre os “devotos” de Nazareth: é herdeiro honorário do acervo de seu biografado. Seu interesse pelo compositor brotou ao acompanhar pela tevê, nos anos 1970, a trajetória da pianista Eudóxia de Barros num concurso de perguntas sobre o compositor. “Foi o canto da sereia. Me identifiquei muito com aquela música, fui atrás de partituras e comecei a pesquisar.” Em 1976, numa visita ao Museu da Imagem e do Som, no Rio, conheceu a figura que lhe abriria muitos caminhos: Almirante, compositor, cantor, radialista e preservador da memória musical brasileira.

Nos anos 1980, Almeida tornou-se amigo de Diniz, um dos quatro filhos que Nazareth teve com Theodora Amália Leal de Meirelles (os outros foram Eulina, Maria de Lourdes e Ernestinho). “Quando o conheci, Diniz tinha 90 anos. Ele e Julita, sobrinha do compositor, moravam num subúrbio do Rio. Após a morte de Diniz, e na ausência de netos, ela me nomeou herdeiro de todo o acervo.” O pesquisador ficou responsável por imagens, documentos, manuscritos e objetos, entre os quais o piano em que Nazareth compôs Brejeiro e Apanhei-te Cavaquinho.

O músico aos 45 anos. Fotos:
 Acervo Ernesto Nazareth/ Instituto
 Moreira Salles
Para o estudioso, um dos grandes méritos de Nazareth é transitar tão bem entre o clássico e o popular. Alexandre Dias concorda e complementa: “Ele é um criador de melodias inspiradíssimas, técnica composicional apurada e músicas muito bem acabadas do ponto de vista pianístico. Nazareth explorava o potencial do instrumento de maneira excepcional. Uma dádiva para os pianistas”.

Exímio leitor de partituras e grande intérprete, o filho do despachante aduaneiro Vasco Lourenço da Silva Nazareth e de Carolina Augusta da Cunha Nazareth compôs sua primeira peça aos 14 anos, Você Bem Sabe, uma polca-lundu. Em seguida veio a polca Não Caio noutra. As mãos grandes a lhe favorecer o ofício paradoxalmente imprimiam um toque suave às teclas. Admirador de seu grande talento, Villa-Lobos dedicou ao amigo o Choro Número 1. Em retribuição, ganhou Improviso, um estudo de concerto. A amizade uniu os músicos nos palcos diversas vezes. Em 1917, tocaram juntos no Cine Odeon, onde tantas vezes o compositor encantara a elegante clientela. Coube a Villa-Lobos a última homenagem, na missa de sétimo dia de Nazareth, morto aos 70 anos em condições trágicas nunca plenamente esclarecidas. Com a sanidade mental abalada por causa de sífilis, fugiu da Colônia Juliano Moreira e morreu afogado numa represa.

A grandiosidade de Nazareth não passou despercebida a Mário de Andrade, para quem sua obra se tornara tão familiar que as pessoas se referiam a ele quase como um parente distante. Numa época de efervescência de ritmos importados, o músico que ensinava a tocar Chopin e Beethoven dobrou-se a gêneros da moda como polcas, valsas e tangos. Mas sua refinada palheta musical ia além. “Nazareth gostava de considerar suas peças desafios a ser vencidos pelos pianistas”, pontua Dias. Muito antes de o tango virar mito na Argentina, Nazareth compunha tangos brasileiros (em torno de 90 entre suas 211 composições), mais para o final de sua vida chamados de choro. “Ele e Chiquinha Gonzaga são pioneiros nesse estilo, até que um grande mestre como Pixinguinha vem e dá o ponto final ao definir o gênero”, analisa Almeida.

O Nazareth cultuador de Chopin e gênio da alquimia musical remete ao personagem do conto machadiano Um Homem Célebre, em que um compositor de polcas buliçosas sonha com o reconhecimento nos salões de concerto. Mas nosso homem célebre frequentou com igual prestígio tanto as lojas em que demonstrava pianos quanto ambientes de culto à música clássica, como o Teatro Municipal de São Paulo, onde tocou como convidado, em 1926. “Nazareth não caiu na perdição de Pestana (o personagem do conto), transcendeu isso. Ele tinha talento para compor o que quisesse, peças eruditas de autêntico valor”, afirma Dias.

Extraído do sítio da CartaCapital

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