15 de maio de 2012

DECIFRA-ME OU TE DEVORO: O ENIGMA AMAZÔNICO - Ismael Machado

A literatura amazônica é recheada de clichês que reverberam uma espécie de “aquosidade”, como se toda a região estivesse submersa nesse universo. Em alguns casos, há uma abundância de termos “regionais”, que antes de dar sentido ao fazer literário do escritor, surge como uma espécie de dicionário de termos amazônicos. Um exemplo claro desse “estilo”, está no romance Marajó, de Dalcídio Jurandir. Lançado originalmente em 1947, o livro é cultuado por beletristas paraenses, que costumam evocar a “injustiça” do escritor ser lembrado apenas nos rodapés da literatura nacional. Mas se visto sem paixão ou bairrismo, Marajó, embora desfile situações de conflitos geracionais de poder que remetem ao coronelismo, peca por se ater demasiadamente em expressões regionalistas que não contribuem para o desenvolvimento da trama nem remetem a um patamar lírico que estabeleça uma nova linguagem literária, como ocorreu com James Joyce ou mesmo com Guimarães Rosa, em âmbito nacional.

Mas por se tratar de uma obra de um autor regional, com tema regional e inserida num universo onde as vozes literárias são ainda mais parcas, Marajó e seu autor foram elevados a um cânone literário paraense onde a ausência de nomes de relevo o faz se destacar numa seara árida. Mas a lacuna ainda permanece a ser preenchida. O discurso local se perde na busca de uma identidade que consiga preencher o lugar especial que ocupa o homem amazônico em seu espaço-tempo.

Ignorado pela Academia, mas influente nome no cenário pós-moderno da literatura urbana nacional, o paraense Edyr Augusto tenta dar voz ao homem amazônico que está longe do imaginário “aquoso” em que a literatura local costuma navegar. Nele estão concentradas algumas facetas que bem poderiam ser classificadas como pós-modernas. Se o pós-modernismo se caracteriza, entre outros, pelo fim das metanarrativas, como sintetizou Lyotard (1987), e também, pela multiplicidade, fragmentação, a desreferencialização e a entropia – que, com a aceitação de todos os estilos e estéticas, pretende a inclusão de todas as culturas como mercados consumidores, no Pará é na literatura de Edyr Augusto que esses signos se encontram, se esbarram, se unem e se separam. Tudo ao mesmo tempo. Agora.

A cidade molda os atos

A própria multiplicidade de atividades do escritor demonstra essa ausência de diferenças entre alta literatura e subliteratura. Publicitário, dramaturgo, radialista, cronista esportivo e poeta, Edyr Augusto lança mão, em seus romances, de uma Belém caótica, urbana, violenta. Seus personagens são traficantes, delegados de polícia, prostitutas, meninos de rua, políticos corruptos. Os Éguas (Editora Boitempo, 1998) é um romance policial onde o escritor usa habilmente a linguagem coloquial, a oralidade de uma Belém urbana, com sua multiplicidade de sujeitos que conduzem a narrativa. Moscow (Editora Boitempo, 2001) é um asfixiante romance sobre um jovem marginal envolvido com gangues, sexo, drogas e crimes na outrora paradisíaca ilha de Mosqueiro. É uma história de suspense, narrada com a singular oralidade da linguagem falada em Belém. A mesma característica é encontrada em Casa de Caba (Editora Boitempo, 2004).

Só que mesmo buscando dar conta de uma outra Amazônia que não a das lendas, da floresta, da languidez do discurso, pode-se dizer que Edyr Augusto supre essa ausência de voz local no cenário literário brasileiro amazônico, ou sua literatura é, também, um amálgama de clichês pós-modernos que dão conta da crise da representação, onde tudo passa a ser válido? A resposta pode ser mais complicada do que se afigura. Não há mocinhos e vilões, heróis ou heroínas nos personagens do escritor. Desfaz-se uma das premissas do modelo de romances como é comum conhecermos. A história centrada no herói ou heroína.

Edyr Augusto também se furta de construir nuances psicológicos a seus personagens. Não os explica, não os justifica, não os defende, não os acusa. As coisas são. Apenas isso. É a cidade, a metrópole, em última instância, que acaba por moldar os atos dos personagens. Edyr Augusto dá as costas à floresta, aos rios, ao discurso “aquoso” e finca os pés no cimento, no vidro e no asfalto da principal capital amazônica. Seu olhar tenta o diálogo com outras metrópoles, que vivenciam situações e dramas semelhantes. Seus personagens podem ser migrantes, sim. Podem ser paraenses advindos do interior do estado. Mas quase nada disso é fundamental para o desenvolvimento da trama.

Efeito pluralizante

Se Edyr Augusto busca, por um caminho tortuoso e quase solitário, fugir da “tradição” literária típica da região, o escritor Milton Hatoum segue, em Manaus, o caminho inverso, alcançando, no entanto, o mesmo objetivo de seu par em Belém. O de construir uma nova literatura amazônica, fincada em um olhar próprio e diferente do que nos reserva o olhar do outro Brasil, o do eixo Sul/Sudeste.

Hatoum, no entanto, não foge da tradição literária amazônica. Nele não há rompimento com uma estética que caracteriza a região. Sua literatura é sinuosa, como os rios da região. Em Dois Irmãos (Companhia das Letras, 2000), a busca pela construção de uma identidade é feita tendo o porto de Manaus como cenário. Há no livro, assim como há também em Cinzas do Norte (Companhia das Letras, 2005), a figura do personagem que volta para casa, em busca de respostas a dilemas de identidade. Só que, ao contrário do personagem filho do fazendeiro em Marajó, de Dalcídio Jurandir, os personagens que retornam dos grandes centros às suas origens, trazem incrustadas em si o que essa mudança ocasionou, gerando de certa forma um choque entre colonizador e colonizado.

Hatoum trata de uma Manaus em decadência cosmopolita, que tenta resguardar os resquícios de um período áureo do ciclo da borracha. Mas evita cair no regionalismo simples de linguagem. Ao contrário, a linguagem serve como um modo de o leitor se enredar nos conflitos internos dos personagens. Tanto Milton Hatoum como Edyr Augusto buscam a produção de novas identidades amazônicas, o que não deixa de ser uma consequência da globalização, segundo Hall (2005). Ora, esse efeito da globalização produz, de acordo com Bhabba (1998), um efeito pluralizante sobre as identidades, ocasionando uma nova variedade de possibilidades e novas posições de identificação. As identidades tornam-se mais plurais e diversas. Em alguns casos, busca-se recuperar uma “pureza” anterior e as certezas e verdades perdidas. É o que costuma ocorrer, de certa forma com Hatoum. Já a literatura de Edyr Augusto indica que há a aceitação da “impureza” e da diferença.

Entre chauasca e carícias

De qualquer forma, essas identidades culturais apresentadas pelos dois autores têm algo em comum: não são fixas, mas estão em transição, num confronto/conflito permanente entre o local e o universal, o novo e o antigo, a homogeneização e a heterogeneidade. Seriam culturas híbridas, como definido por Bhabha, ou seja, os personagens são o produto de novas diásporas, novas migrações e devem, sobretudo, aprender a lidar e conviver com essas duas identidades culturais, tentando, ao mesmo tempo, estabelecer um novo olhar, uma nova perspectiva para a voz amazônica.

No romance O Opositor (Editora Objetiva, 2004), Luis Fernando Veríssimo homenageia o escritor amazonense Milton Hatoum, batizando o personagem dono de um bar em Manaus, com o sobrenome do escritor amazônida. Vale a pena reproduzir trechos da “orelha” do livro de Veríssimo, para constatarmos o quanto o imaginário amazônico quando (re)visto pelo eixo Sul/Sudeste ainda é repleto do exotismo e do escancaramento da estranheza e diferença. Diz o texto da orelha:

“Um jornalista de São Paulo vai a Manaus fazer uma reportagem sobre plantas alucinógenas e em pouco tempo, sem se dar conta, vai imergir num abismo, um enredo de suspense, de onde talvez só possa sair quando chegar a um afluente de um afluente de um afluente do rio Negro.

Entre xícaras estonteantes de chauasca e carícias não menos desconcertantes de Serena – a mulher metade dinamarquesa, metade índia, que teve os dois polegares decepados, nosso herói vai descobrir na Amazônia prazeres insuspeitados.”

Um messias para os povos da floresta

Nesses dois parágrafos há um resumo do imaginário amazônico visto por olhos outros que não o da própria região. A Amazônia é o local de plantas alucinógenas, onde as pessoas costumam se perder, entre rios e florestas e sexo fácil e selvagem. É uma visão antiga, de colonizador, onde a cidade em si, Manaus, nada mais é que a porta de entrada para a densa floresta repleta de índios e animais selvagens.

Além disso, o personagem principal é um jornalista. É curioso notar que o imaginário amazônico, geralmente uma terra sem fronteiras, sem lei e exótica, foi construída em grande parte pelo jornalismo. A antropóloga e professora Eneida Assis, da Universidade Federal do Pará, defende a ideia de que as visões construídas no decorrer dos anos reforçam essa ideia. “A Amazônia é conhecida como uma terra sem homens para homens sem terra por conta da ideia de que a região é um vazio”, diz ela. Outra ideia errônea disseminada pelo jornalismo é o fato de a Amazônia ser conhecida só como “pulmão do mundo”.

A visão superficial da Amazônia apresentada por Veríssimo em O Opositor poderia ser apenas um reforço a mais dentro da visão estereotipada da região. Mas há tentativas um pouco mais arrojadas de se mostrar a Amazônia a partir de uma visão “alienígena”. Uma delas é o romance Ua:Brari, de Marcelo Rubens Paiva (Editora Mandarim, 1990).

O livro é resultado de uma temporada passada pelo autor de Feliz Ano Velho e Blecaute no Pará, onde manteve contato com tribos indígenas e regiões de garimpo. O enredo de Ua:Brari é o seguinte: Zaldo é filho de um rico empresário brasileiro, que viaja à Amazônia a negócios. Ele se embrenha na mata e desaparece. Um ano depois chega a notícia de que Zaldo é tratado como um messias pelos povos da floresta. Chamam-no de Ua:Brari que, segundo a lenda dos índios Macuxi, era um jovem que conhecia o caminho para o outro lado do mundo. O jornalista Fred, amigo de Zaldo, é contratado para acompanhar a expedição que pretende resgatar Zaldo.

Amor clandestino

Toda a trama se desenrola a partir dos conflitos e paixões dos personagens do romance nessa cruzada rumo ao coração amazônico. Cruzam-se nessa cruzada, missionários estrangeiros, militares saudosos do período militar, antropólogos, sulistas. Todos com praticamente a mesma intenção: resgatar a Amazônia, povoar a Amazônia, salvar a Amazônia. Todos sem entender a Amazônia.

Em determinado trecho, o militar conversa com o jornalista. E lhe diz: “Esses índios não deveriam ficar confinados nas reservas demarcadas. Seria mais válido integrá-los ao país, tornando-os brasileiros. O Brasil precisa deles. E eles querem sair, comprar jeans, relógios, óculos escuros e um TV Panasonic. A cultura deles é baixíssima e não é respeitável.”

É perceptível, no romance de Paiva, que mesmo aparelhado de boas intenções a respeito da Amazônia, o discurso empregado no livro é o de uma região que entorpece os sentidos, retira a razão e onde as pessoas são completamente tragadas e envolvidas pelo clima. Ou enlouquecem, ou mistificam-se ou entregam-se a uma volúpia sexual desregrada.

Novamente, o personagem principal é um jornalista. Assim como também o é o personagem principal de “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Marçal Aquino (Companhia das Letras, 2005). Numa cidade do Pará, à beira de uma corrida do ouro, o repórter-fotográfico Cauby se envolve numa história de amor clandestino com a mulher de um poderoso local, tendo como pano de fundo os conflitos entre garimpeiros e uma mineradora.

A esfinge se perpetua

Aquino envereda por outro caminho. O Pará retratado no livro está longe de ter a floresta como cenário. Ao contrário, o ambiente descrito assemelha-se ao dos faroestes do cinema, com pistoleiros, poeira, duelos e linchamentos. Um cenário que se torna curioso aos leitores menos atentos, porque é raro que nele embrenhem-se os escritores locais, que perpetuam sempre a imagem da floresta como símbolo característico da Amazônia. Marçal Aquino retrata o viés dessa história, o resultado das contínuas e desordenadas migrações para o sul e sudeste do Pará e os efeitos das atividades de garimpos e mineradoras para a região, com o assoberbamento da prostituição e da violência.

A literatura contemporânea feita por paraenses/amazonenses praticamente ainda não utilizou esse universo migratório das últimas décadas como elemento para sua construção narrativa. O texto seco e duro de Marçal Aquino se contrapõe firmemente à concepção “aquosa” de parte da literatura amazônica. E expõe novamente uma realidade: ainda não é o olhar local que tenta ordenar sentido à realidade das múltiplas Amazônias. Até quando?

Ao longo de décadas e décadas a Amazônia apresenta-se como um desafio à interpretação de quem busca entendê-la. A literatura regional ainda não deu conta de suprir essa lacuna por estar enviesada no discurso que agrada ao olhar externo: o da Amazônia exótica, primitiva, repleta de seres fantásticos, mulheres voluptuosas. Exagera-se a linguagem regionalista, ao gosto dos fregueses. Como os atuais grupos de danças folclóricas feitos para exibição a turistas, a literatura da Amazônia, feita por amazônidas esbarra na dificuldade de suplantar essas armadilhas. Alguns autores, no entanto, tentam fugir dessa prisão.

Ao mesmo tempo, outros olhares começam a ser reservados à região por autores de outras praças. Da mesma forma que os migrantes ocuparam espaços na floresta para a implantação de madeireiras, pastos, fazendas e grandes plantações de soja, assim estão chegando autores de fora que olham para a Amazônia em busca de novas formas de inspiração literária. E entre os que aqui estão e os que aqui chegam, a esfinge amazônica se perpetua com o seu enigma: decifra-me ou te devoro.

* Ismael Machado é jornalista, professor e autor do livro Sujando os sapatos – o caminho diário da reportagem.

Extraído do sítio Observatório da Imprensa

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