4 de maio de 2012

PIANO NO "FRONT" - Sérgio Bittencourt Sampaio

A gravura "Party at Rio de Janeirol A castrate singing"(Recepção no Rio de Janeiro. O canto de um castrato), de 1826, mostra que, nessas ocasiões, o piano era um instrumento indispensável.
Uma vez, em um sarau para a aristocracia durante o Segundo Reinado (1840-1889), um pianista improvisou uma melodia que muito agradou a duas senhoras idosas da nobreza, embora nenhuma delas tivesse ido com a cara do músico. Ao ser indagado por uma das senhoras sobre o nome da música, ele respondeu com ironia: “‘Recordações da Juventude, Recordações da Juventude’, senhora viscondessa”. A alusão à juventude perdida das nobres foi percebida na mesma hora. Os maridos se aproximaram do instrumentista e quase chegaram às vias de fato. O autor da frase inadequada era o visconde de Taunay, que, apesar de ter se imortalizado na História e na literatura como autor de romances, contos, novelas e obras teatrais, ostentou desde sempre uma grande paixão pela música em todas as suas formas.

Desde criança, Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay (1843-1899) já manifestava sua aptidão para as artes em geral. Tanto que foi estudar com o mestre italiano Isidoro Bevilacqua (1813-1897), o professor mais conceituado da época. Afinal, o piano era o instrumento da moda, a ponto de o Rio de Janeiro ser considerado “a cidade dos pianos”, de acordo com o pintor e caricaturista Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879). O instrumento servia tanto para animar festas com as danças em voga, como valsas, quadrilhas, polcas, galopes e xotes, como para a execução de obras eruditas. Para as moças da sociedade que sonhavam com um bom casamento, aprender a tocar piano era tão importante quanto falar francês.

Mas, ao contrário do esperado, estudar com Bevilacqua foi extremamente desagradável para Taunay. Isso porque o aluno considerava este estudo mais uma brincadeira do que arte. Ele costumava escolher as partituras mais feias e nelas colocar nomes bizarros, satirizando pessoas conhecidas, respeitadas por sua família. Nem o pai do garoto ficou imune às zombarias. Francês, quando falava a palavra freguês, a primeira sílaba soava entre “ai” e “ei”. Ironizando certa vez, o menino Alfredo escreveu numa partitura “não fica fraguês”, frase que o pai dizia a algunscomerciantes quando cobravam caro por seus produtos. Ao contrário do que esperava, Taunay não recebeu o pior castigo pela irreverência, apenas uma reclamação.

Mesmo assim, a música foi aos poucos fascinando o jovem, e ele chegou a esboçar composições já na adolescência. Sua primeira peça foi um acalanto de 1852-1853 intitulado “Thomas m’endort, Thomas m’éveille” (“Tomás me faz adormecer, Tomás me desperta”), cuja inspiração havia sido uma cena doméstica corriqueira. O pajem Tomás, companheiro de quarto do rapaz, era obrigado a repetir muitas vezes a prece “Louvado seja...”, oração de agradecimento a Deus pelo dia que estava terminando. Passado algum tempo, o escravo, cambaleando de sono implorava: “Ah! Sinhozinho, também basta! Deixa a gente dormir sossegado!”

Aos 16 anos, Taunay se mostrava empenhado no trabalho artístico: elaborou o libreto de umaópera, “Andrômaca”. Mas, seguindo o conselho dos pais, decidiu deixar este talento em segundo plano e seguir a carreira de engenharia militar. Os sonhos de uma vida voltada para a música se dissiparam, mas o jovem fez de tudo para suprir esta ausência ao longo da vida.

Ao assistir à Missa do Espírito Santo, na Capela Imperial, em 21 de dezembro de 1872, Taunay ficou tão impressionado com a beleza da música que, terminada a cerimônia religiosa, permaneceu no recinto somente para saber o nome do autor. Tratava-se do padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), exímio músico e compositor brasileiro muito prestigiado por D. João VI. Legítimo batalhador pela divulgação e pelo reconhecimento dos trabalhos de José Maurício desde 1880, o visconde não poupou esforços para fazer uma edição das obras do padre financiada pelo governo imperial – quando já ocupava uma cadeira no Senado. No entanto, o projeto acabou não se realizando devido a mudanças na direção da Casa.


O jovem Alfredo Taunay, música e
 literatura eram seus principais
 interesses.
O empenho de Taunay em divulgar a obra do padre-músico, apesar de justo, veio acompanhado de críticas e empecilhos. Ele chegou a ser acusado na Câmara de “estar fazendo os senhores deputados perderem seu precioso tempo por causa de um rabequista”, conforme registrou o musicólogo Bruno Kiefer. Essa devoção ficou mais do que explícita em diversos artigos publicados pelo visconde na Revista Brasileira e no Jornal do Commercio no final do século XIX. Muitos deles foram reunidos posteriormente pelo filho do visconde, o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), em dois livros: Uma grande glória brasileira – José Maurício Nunes Garcia e Dois artistas máximos – José Maurício e Carlos Gomes (1930), que trata também de outro músico venerado pelo pai.

A relação de Taunay com o campineiro Antônio Carlos Gomes (1836-1896) se deu de maneira bem diferente. Uma admiração mútua unia o escritor e o músico, a ponto de Taunay ter feito algumas tentativas de oferecer libretos para o colega usar em suas óperas – única maneira que ele tinha de participar do universo lírico. O visconde buscava uma temática genuinamente brasileira e tentava reforçar, na cena lírica, o nacionalismo que já dominava a literatura. Tanto que o primeiro tema a ser oferecido a Carlos Gomes era baseado em um episódio da vida do descobridor português Diogo Álvares Correia (1475-1557) e seria intitulado “Paraguaçu” ou “Moema”. Gomes recusou, pois já havia produzido “O Guarani”, inspirado no romance de José de Alencar (1829-1877), cuja trama também se passava no universo indígena.

Algum tempo depois, apoiado na simpatia que ambos nutriam pela causa abolicionista, Taunay concebeu o enredo de “O Escravo” e apresentou ao amigo. O personagem principal seria um negro de bom caráter, disciplinado e honesto, e a trama se passava no começo do século XIX. O músico a princípio acatou a ideia, mas, de volta à Itália, onde residia, achou que seria precipitado colocar um negro na cena lírica, pois isso poderia motivar protestos dos opositores da causa libertária. Resolveu, com o libretista italiano Rodolfo Paravicini, substituir o protagonista por um índio e retroceder o enredo para o século XVI. A modificação deixou Taunay furioso a ponto de levar a questão para os jornais da época. Embora concebido na Itália, “O Escravo” teve sua estreia no Rio de Janeiro (1889).

Nesse ínterim, outro texto de Taunay, Inocência, foi apresentado a Carlos Gomes e recusado. O motivo seria simplesmente a falta de cenas de impacto – mortes, tragédias, lutas – que pudessem comover e prender a atenção do público.

Dessa forma, a produção musical do visconde, em sua quase totalidade, restringiu-se às peças para piano, com um estilo que se adequava ao gosto daqueles que frequentavam os salões do Segundo Reinado, onde o incipiente nacionalismo musical brasileiro ainda não havia penetrado. Prova disso são as “Chopinianas”, valsas no estilo do compositor polonês Frédéric Chopin (1810-1849), assinadascom os pseudônimos Flavio Elysio e Sylvio Dinarte.

Dividido entre a música e as letras, Taunay manifestava uma interessante dualidade criativa. Nas partituras, ele sempre se mostrava elitista, homem da aristocracia, fiel ao estilo europeu. Nelas não há traços regionais, diferentemente de alguns de seus escritos – como Inocência (1872) e Ierecê, a Guaná (1874) –, que apresentam uma linguagem interiorana, trazendo à Corte uma rica amostra do linguajar sertanejo e indígena. Em suas andanças pelo sertão, ele chegou a ouvir melodias locais, mas jamais se deixou impressionar por elas. Por outro lado, a vivência no interior acabou ajudando-o a se apaixonar por uma indiazinha, Antônia, a mulher que ele mais amou, conforme declarou em suas Memórias. Os encantos da jovem não se comparavam aos das damas da sociedade, apesar de todo o luxo e a arte que ostentavam.

Mesmo apaixonado por Antônia, a música interiorana e popular pouco significava para Taunay, como se pode ver em uma passagem de Inocência, onde ele menciona, de modo sucinto, o jeito de o sertanejo se expressar musicalmente: “Ocasiões há em que o sertanejo dá para assobiar. Cantar, é raro; ainda assim, à surdina; mais uma voz íntima, um rumorejar consigo, do que notas saídas do robusto peito.” As referências à música na obra literária do escritor se concentraram nos trabalhos sobre a vida na Corte – Memórias, Manuscrito de uma mulher, No declínio, Ouro sobre azul, Trechos de minha vida. Deve ser porque, para o visconde, a música era uma manifestação restrita à classe social elevada e a ambientes requintados.

* Sérgio Bittencourt Sampaio é musicista, membro titular da Academia Nacional de Música e autor de Negras líricas – Duas intérpretes negras brasileiras na música de concerto (Séc. XVIII-XX) (7Letras, 2010).


Extraído do sítio Revista de História

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