10 de maio de 2012

O EQUÍVOCO DE NELSON RODRIGUES - Wander Lourenço*

Nelson Rodrigues
Encontrávamo-nos na Casa do Vento, morada do poeta gaúcho Carlos Nejar na bucólica Urca, este cronista com a cineasta Anna Azevedo mais a atriz Mônica Vianna, para tratarmos do documentário Dom Quixote dos pampas, filmografia artesanal concebida sobre percurso deste magnífico tradutor, advogado, romancista, teatrólogo, historiador da literatura e membro da Academia Brasileira de Letras. O título da crônica se justifica porque o mestre Nejar, que acabara de ler a minha peça Solar das Almas, contou-nos que se descobriu ficcionista após celebrar quarenta primaveras; e que, quiçá, comigo poderia acontecer algo parecido, caso eu optasse por escrever romances neste período da existência em que Lima Barreto se despedira da vida. 

Para não contrariar convicções dramatúrgicas, respondi-lhe que desconfiava de que muito provavelmente esta hipótese seria impossível de se concretizar comigo, visto que eu jamais incorreria no equívoco de Nelson Rodrigues. É verdade que o silêncio ensurdecedor dos interlocutores obrigou-me a refletir sobre a catastrófica afirmação, dita sem medir as consequências de um possível desastre literário. “– Afinal, qual o equívoco que incorrera um gênio tão festejado em seu centenário pela obra teatral e jornalística?” – quis saber a plateia sobre a bombástica acusação, que eu acabara de fazer ao autor da mais ilustrada dramaturgia de língua portuguesa do século 20. “O equívoco de Nelson Rodrigues foi escrever prosa de ficção, romances, meu caro Nejar!...” – respondi-lhe em tom singelo e profético. 

Aos trancos e barrancos, livrei-me das menções eruditas para discorrer sobre uma linha de raciocínio, que sublinhava a tese de que o mestre seria um assíduo leitor de Dostoiévski, a ponto de recitar de memória inúmeros fragmentos extraídos das páginas dos Irmãos Karamazov. Ao tomar fôlego, expliquei-lhes que o autor de Engraçadinha almejara se consagrar no ofício de romancista; porém, graças aos deuses do teatro, não conseguira se realizar como ficcionista de fina estirpe qual um Machado de Assis, Clarice Lispector ou Guimarães Rosa. Foi quando eles me interromperam para polemizar em quase uníssona altercação: “– Nesta Bruzundanga quantos escritores obtiveram o êxito narrativo a partir da proposição estética de se escrever um Quincas Borba ou Corpo de baile?” – indagou-me, desafiadora, a documentarista Anna Azevedo. 

Foi o mote de que precisava para explicitar que, embora não alcançasse o categórico prisma dos mestres da ficção, decerto Nelson Rodrigues se aproximaria de Shakespeare ao assinar o grande clássico da moderna dramaturgia representado sob a impactante direção de Ziembinski, em 1943, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Disse-lhe que o registro rodrigueano Vestido de noiva está para as artes cênicas tal como Memórias póstumas de Brás Cubas para a nossa prosa de ficção; ou seja, da mesma maneira que a obra de Machado de Assis passou a ser um divisor de águas na história da ficção brasileira, o espólio teatral pátrio pode ser considerado como antes e depois da obra-prima de Nelson Rodrigues.

Observei aos intelectuais navegantes que o que mais me impressionara na estruturação deste emblemático discurso, arquitetado a partir de uma linguagem simples, é a influência do surrealismo, no tocante ao diálogo com a desestabilização da verossimilhança no ápice da experiência neorrealista capitaneada por Graciliano Ramos. As alusões ao cinema através do recurso do flashback na década de 40 decerto originariam na ruptura de uma cronologia imperativa nas peças de teatro, de modo a se inserirem pelo viés dos planos da Realidade, Alucinação e Memória, que se entrecruzam por subterrâneos da psicanálise e da hipocrisia embutida na constituição familiar tão explícita em Memórias póstumas. 

As cenas se intercalam para desvendar o subconsciente de Alaíde, ao mesmo tempo em que revela a decomposição da sociedade conservadora e patriarcal a desmoronar-se por sobre um cinismo estúpido e mordaz. Enfim, creio eu que, após Vestido de noiva, Nelson Rodrigues não precisaria nem mais pensar em teatro e poderia se dedicar ao gênero que mais o instigara – o romance; entretanto, ainda assim o homem cometeu o inequívoco ato de escrever Anjo negro. 

* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor da Universidade Estácio e autor dos livros ‘Com licença, senhoritas (A prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e ‘O enigma Diadorim’.


Extraído do sítio Jornal do Brasil

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