24 de junho de 2012

AINDA O ACORDO ORTOGRÁFICO - José Flávio Taveira Pimentel Teixeira


Na semana passada aqui escrevi sobre o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), em vias de ratificação pelo Estado moçambicano. Referi a minha insatisfação com o acordo, com os seus fundamentos político-ideológicos e com alguns dos seus presumíveis efeitos. E também o que me parece ser um facto óbvio: este processo é externo aos países africanos (e ao asiático) de língua oficial portuguesa, e é uma dinâmica que lhes tem sido apresentado como um “facto consumado” ou, melhor dizendo, um facto a consumar. No entanto, não alio este meu desacordo com um exagerar dos seus efeitos, como se se tratasse de uma catástrofe sociocultural como alguns dos seus detractores apontam no contexto do debate público que, além-fronteiras, tem acontecido nos últimos anos.

É necessário sublinhar a existência de um vasto corpo documental crítico do AO90, produzido por linguistas, os quais apontam as insuficiências e as malevolências do seu conteúdo sob o estrito ponto de vista linguístico. É importante referi-lo e não só por consideração aos especialistas. Mas porque as argumentações avançadas, de uma tecnicidade que em boa verdade escapa a um ajuizar por parte de um leigo como eu, têm a qualidade de não se basearem em hipóteses externas à própria língua. Como o é o caso das anunciadas hipotéticas vantagens de uma ortografia única para a disseminação do português, verdadeiro argumento de todo este processo AO90. E que o apouca intelectualmente, pois o ancora num mero horizonte de reclamadas boas intenções.

Nesse eixo de argumentação crítica do AO90 surgem com particular relevância os textos do linguista português António Emiliano. Têm também a vantagem de terem sido passados a livro. E nesse sentido seria interessante que as suas obras dedicadas ao assunto fossem aqui distribuídas para enriquecer uma discussão pública, apesar das diferenças contextuais. “O fim da ortografia” ou “Foi você que pediu um acordo ortográfico?”, editados em Portugal pela Guimarães, baratos e acessíveis seriam boas opções para os livreiros nacionais.

Penso que a discussão pública sobre o assunto é necessária. Mais que não seja para sedimentar as transformações que acontecerão com a previsível adopção do AO90 em Moçambique. Nesta última semana, e por causa do pequeno texto da semana passada, várias pessoas me questionaram da real importância do A090, e como tal das razões para tamanho desacordo meu. E também sobre os detalhes das modificações que serão introduzidas. Isso denota algum interesse, até ansioso, sobre a matéria.

Não sou especialista da língua. Nem sou purista. O meu desacordo profundo assenta em duas questões: o substrato intelectual, ideológico, que alimentou a matéria, que é regressivo. E o facto de implicar um dispêndio de recursos (energias, atenções, fundos) no ensino do português e na formação de professores e de formadores. Os quais poderiam (e deveriam) ser orientados para tarefas bem mais interessantes e produtivas no âmbito da política da(s) língua(s).

A questão coloca-se ainda a um outro nível. Reina nos acordistas a crença de que uma ortografia única é fundamental para a comunhão na comunicação entre os falantes de português, e para o seu ensino. Ora essa perspectiva baseia-se num “grafocentrismo”. As dificuldades de comunicação e de aprendizagem entre os falantes (como língua primeira, segunda, estrangeira) relacionam-se com os usos da língua. Com as diversas fonéticas (os sotaques). Como sabe qualquer português, quase sempre mais incompreensível para ouvidos estrangeiros do que os moçambicanos, os brasileiros, etc.

E na escrita, na qual essas dificuldades se prendem com o vocabulário usado, com a sintaxe (as formas de construção) praticada, com a semântica (os sentidos) pretendida. Por isso, ao lermos textos de diferentes origens tantas vezes balançamos na sua compreensão. O problema é que alguns entendem isso como uma fragilidade do português. Mas isso não é um defeito, é uma das suas riquezas. Em última análise é mesmo um sinal da sua disseminação, que é o objectivo pretendido pelos acordistas.

Conto sempre dois episódios. Uma antropóloga portuguesa que se doutorou sobre uma temática brasileira. Quando publicou em livro a sua tese, e dado que o público privilegiado seria brasileiro, a editora “traduziu” o seu texto para português do Brasil. Modificando algum vocabulário mas fundamentalmente modificando-lhe a sintaxe. De maneira a tornar mais agradável, mais fácil, a sua apreensão por parte da maioria dos leitores. Os quais seriam, na sua esmagadora maioria, académicos ou funcionários. Ou seja, gente bem letrada, sem particulares dificuldades na leitura. Uma outra amiga, brasileira aqui radicada, contava-me que os relatórios que fazia para o ministério moçambicano no qual era consultora eram também “traduzidos”, para mais facilidade, comodidade, de leitura. Nada disto tem a ver com a ortografia.

E todos estas questões, que não são “problemas” (deficiências) mas são sim “problemáticas” (constituintes, riquezas plurais) da língua portuguesa em contexto internacional, continuarão com o AO90, apesar dos custos que ele implica, apesar da mentalidade que ele reproduz. Acima de tudo porque o que produziu este acordo foi um pensamento pobre, formalista. Distraído, afastado, da enorme pluralidade que é o português. Vocabular, sintáctica, semântica. Social e cultural. Ou seja, o que produziu o AO90 é um pensamento de nós afastado. De nós, os (re)criadores do português. Também por isso as enormes demoras na produção do (novo) Vocabulário do Português, aquele documento necessário à efectivação do Acordo Ortográfico. E que não existe. Ainda não existe exactamente porque a sua produção exige um pensamento diverso do pobre “homografismo”. Exige-nos. É à nossa plurigrafia. Actual. E, é óbvio, futura.


Mais sobre Acordo Ortográfico aqui.

Extraído do sítio Ma-schamba

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