2 de junho de 2012

PESQUISA ANALISA RACISMO NA LITERATURA DE CORDEL

A literatura de cordel é muito difundida no Nordeste brasileiro e se constitui em um registro importante das manifestações da cultura popular. Como retrato das relações sociais, principalmente nas cidades menos urbanizadas, no início do século 20, esse tipo de literatura revela os traços do racismo presentes no cotidiano e nas narrativas dos nordestinos.

Esse é o tema da pesquisa "Nordeste Brasileiro: A representação do Racismo à Brasileira dentro da Literatura de Cordel (1900-1950)", realizada pela aluna de especialização em História Social do Poder, Cinthia Roberta Santos. "Quero refletir sobre as questões étnico-raciais que estiveram presentes no processo de construção da identidade cultural de homens e mulheres sertanejos no início do século 20. Para tal análise, traçaremos um diálogo entre história e literatura, em que nos propomos a entender de que maneira o racismo à brasileira foi representado dentro da literatura de cordel", explica Cinthia.

A pesquisadora está na fase de levantamentos do arcabouço teórico e do material de análise. "Partiremos da premissa que o preconceito racial ao modo brasileiro é uma representação da elite oligárquica, mas em muitos aspectos é compartilhado pelas classes populares e reproduzido por meio de suas relações cotidianas. Em um segundo momento, refletiremos sobre as formas de resistência, porque não temos dúvidas de que os textos populares, se por um lado reproduzem o discurso do dominador, por outro representam a resistência cultural de uma comunidade, bem como seu imaginário, expondo sua maneira de pensar, sua reação diante de problemas e acontecimentos sociais", destaca a historiadora.

Cinthia Santos ressalta que o objetivo do projeto é compreender como esse discurso racista, presente na cultura dominante, é absorvido pelo povo e, desta forma, alimenta um imaginário social, no qual o indivíduo negro é visto como inferior. "Estamos analisando como os cordéis, impressos e cantados em feiras populares de várias cidades do Nordeste, definem a imagem do negro. Tambem queremos compreender, por meio da desconstrução dos discursos dos cordelistas do inicio do século 20, como a ideologia racista construída pelas ciências sociais do período circulou nos meios populares, e como foi apropriada por essa camada da população", detalha a pesquisadora.

De acordo com a pesquisadora, o racismo presente nas elites brasileiras é declarado. Em várias circunstâncias, o racismo reproduzido pelas classes populares e até mesmo pelos negros, tem um efeito muito mais nocivo para a autoestima desta população. Por isso, a pesquisadora não quer apenas se deter sobre o problema, mas também avaliar as formas de superação. "Se, por um lado, estaremos atentos à acomodação desse discurso racista às falas populares, ao seu imaginário, por outro, procuraremos pelas resistências, pelas formas imaginativas pelas quais essa população buscou enfrentar os problemas raciais", pontua Cinthia.

Análise do discurso

Na primeira etapa da pesquisa, Cinthia analisa o discurso dos autores como Heinrich Handelmann, Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, Pierre Danis, Romero Silvio, João Batista Lacerda, Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco, entre outros historiadores, romancistas e pesquisadores que retrataram esse período inicial do século 20 e foram observadores atentos das relações sociais e dos conflitos de poder, muitas vezes, embasando teoricamente o discurso de inferioridade da raça negra."De posse dessas análises, partiremos para o mapeamento das obras de literatura de cordel desse período, que em seus discursos deixaram vestígios de racismo. Ou seja, aqueles que na sua estrutura e composição estão inseridos o imaginário sobre o homem e a mulher negra, sobre sua cultura e valores", relata Cinthia sobre a pesquisa.



A literatura de cordel é, ainda hoje, muito presente no cotidiano das classes populares do Sertão nordestino. Basta andar pelas feiras do interior do Estado para constatar que os versos ainda são vendidos em formas de pequenos livretos e muitas vezes também declamados para o público que circula na feira. As pessoas param, escutam, e gostam das narrativas. No período analisado pela pesquisadora, então, essa relação era ainda mais forte. Os cordéis eram praticamente a única forma de divulgar informações e acontecimentos que alcançava as camadas populares. "O período de 1900 a 1950 é um campo de pesquisa muito rico para a apreciação dos mecanismos de construção da ideologia racista e do seu processo de inclusão no imaginário popular", ressalta Cinthia Santos.

Segundo a pesquisadora, essa forma de literatura circulou mais de um século apenas na forma oral. "Pela aceitação do cordel nas classes populares, ele é entendido por nós como um jogo de espelho, já que a profunda interação com o meio social registra muito bem os pensamentos, acontecimentos e preconceitos circulantes na época. Nesse sentido, o cordel nos ajudará a desconstruir, dentro das falas e do imaginário popular, o discurso linear e pacificador do mito da democracia racial, da cordialidade e da integração da sociedade brasileira, que escamotea as desigualdades sociais e étnico-raciais", critica a historiadora.

Racismo disfarçado e cotas

A pesquisadora ressalta que esse estudo é importante, principalmente porque no Brasil o racismo é "disfarçado". Numa sociedade mestiça, não se assume publicamente o preconceito racial, mas ele existe. "Trazer a discussão sobre o racismo à brasileira é desconstruir o discurso da cordialidade racial no Brasil. Questionamos como um País que se diz democrático, onde a maioria da população se declarou preta ou parda no último censo, ainda se perpetuam profundas desigualdades, já que essa maioria vive em extrema pobreza, com baixa escolaridade, com muitos desempregados, o maior contingente de presidiários. São as principais vítimas de homicídios e outros crimes violentos, além de terem uma expectativa de vida inferior à dos brancos. Portanto, é pertinente perguntar se o individuo negro tem lugar nessa sociedade contemporânea e por que ainda continuamos com o discurso da democracia racial?", critica a pesquisadora.

Para Cinthia, a retomada da discussão dentro do ensino superior brasileiro sobre o racismo abre inúmeras questões sobre as relações étnico-raciais no Brasil. "Esse é um debate que estava silenciado quase que totalmente ao longo de todo o século 20. Entre tantas questões conflitivas, revela-se agora o quanto nossa classe acadêmica esteve inacessível à proposta de inclusão racial", pondera ela.

A historiadora destaca ainda que a nossa Constituição coloca a discriminação racial como um crime inafiançável, mais um motivo pelo qual o racismo permanece disfarçado. "Nas rodas de amigos, falamos do horror ao racismo e admitimos publicamente que o Brasil é um país racista . Tal contradição indica que nosso racismo é velado e, nem por isso, menos perverso. Um exemplo é o questionamento contra as cotas raciais em universidades públicas para negros, que demonstra o medo das elites em perder a hegemonia dentro da sociedade brasileira", denuncia a pesquisadora

Olhar sobre a própria história

Além das motivações acadêmicas, Cinthia Santos tem uma trajetória pessoal que a estimula nessa pesquisa. Aluna da escola pública de Alagoas, ela passou por um ensino precário, com deficiências principalmente em matérias como Física e Matemática, porque faltavam professores. Quando terminou o ensino médio na escola Laura Dantas, no Cepa, em 2003, tentou fazer o vestibular para o curso de Ciências Sociais, mas foi reprovada. Como tantos jovens das classes populares, Cinthia desistiu de colocar o ensino superior como meta. "Tive que trabalhar, pois eu não tinha condição de pagar um cursinho e ficar me preparando para o vestibular; cheguei a pensar que universidade não era para mim. Passei de 2003 a 2006 trabalhando como camelô no Centro da cidade. Foi, quando surgiu o sistema de cotas, e o meu irmão, que fazia parte do movimento negro, me convenceu a fazer o vestibular novamente, dessa vez pela cotas", conta Cinthia.

O estímulo do irmão, que passou no vestibular da Ufal, em 2005, no início do sistema de cotas, foi decisivo para Cinthia. "Sérgio sempre foi uma pessoa politizada e engajada no movimento. Ele foi minha principal inspiração, porque desde criança trabalhou e nunca desistiu de fazer universidade. Na minha família, ele foi o primeiro a cursar o ensino superior. Lembro que, na época em que ele fez o vestibular, a concorrência pelas cotas estava maior do que pelo sistema normal. Foi uma conquista de todos quando ele foi aprovado", narra a estudante universitária.

No ano seguinte, em 2006, Cinthia fez o vestibular para História e foi aprovada. "Entrei na universidade, deixei de trabalhar no Centro como camelô. Logo no primeiro ano, consegui bolsa permanência e daí não parei, sempre tive bolsas, de Pibic, monitoria, bolsa trabalho. Tive boas notas, tirei 10 no meu TCC e colei grau ano passado. Passei na seleção para a especializaçõa em História Social do Poder, concorrendo com mais de cem inscritos, em que foram selecionadas 16 pessoas, e eu estou entre elas", diz orgulhosa a pesquisadora. "Acredito que o sistema de cotas é fundamental para ampliar o acesso à universidade, dando oportunidade a pessoas que, como eu, tiveram uma formação deficiente na escola pública", defende ela.



Esta defesa das cotas e a participação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab) pautam a vida acadêmica da pesquisadora. "As cotas são uma retratação do governo federal por séculos de discriminação com essa população negra, que estuda em escolas públicas com ensino precário e que por muito tempo foi excluída da sociedade. Quem conhece a história do Brasil, sabe que é impossivel ser contra essa política de inclusão social. Os discursos que vemos contra as cotas são claramente racistas e partem de uma elite que teme as mudanças que podem ser gestadas por uma classe popular educada e consciente", conclui Cinthia.


Extraído do sítio Tribuna Hoje

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