23 de junho de 2012

O ACORDO ORTOGRÁFICO EM MOÇAMBIQUE - José Flávio Taveira Pimentel Teixeira



Há mais de duas décadas que se discute o acordo ortográfico, assinado em 1990, mas ainda não introduzido. O grande argumento que sustenta, desde a sua origem, esta homogeneização da grafia da língua falada em oito países anuncia-a como facilitadora do seu ensino internacional e, portanto, da sua expansão. Argumentos contrários, como o da evidência da múltipla grafia do inglês, são esquecidos. Sublinhe-se, este projecto ortográfico baseia-se no projecto de expansão do português no mundo, entendendo-se o acordo como disso privilegiado instrumento.

A semana passada o Conselho de Ministros decidiu propor à Assembleia da República a ratificação do acordo, anunciando também que até à sua entrada em vigor decorrerá ainda um vasto trabalho de ponderação das suas implicações e de consolidação dos instrumentos para o efectivar. Após essa previsível próxima ratificação, e com excepção de Angola, todos os países de língua oficial portuguesa terão acatado o acordo. Este processo era esperado em Moçambique, até pelo seu simbolismo face à realização aqui em Maputo, já no próximo mês de Julho, da cimeira da CPLP.

A questão não tem sido alvo de grande debate público no país. O que não surpreende, problemáticas bem mais prementes, inclusivamente no domínio do ensino do português, preenchem as preocupações nacionais. Por isso, ou talvez por minha distracção, não tenho bem presentes as questões fundamentais que a adopção levantará. Posso especular, aventando algumas, mas apenas num registo de leigo. Antes de tudo lembro que, e como muitos dos seus defensores sublinham, as mudanças introduzidas incidem apenas sobre uma pequena franja de palavras, o que reduz a complexidade da sua introdução. E, ainda, sublinho que as dificuldades que a nova grafia coloca partem da situação presente, e que o trabalho de preparação a muitas poderá ultrapassar. A ver vamos.

Julgo que o processo enfrentará um factor estrutural do sistema de ensino, a deficitária apreensão do português escrito por parte do universo docente, no ensino básico e secundário. Ao longo dos anos tenho tido vários alunos de licenciatura que são também professores. E em muitos deles são notórias as dificuldades linguísticas. Esta mutação arrisca incrementar o “confusionismo”. E não poderá ser esquecida a questão das dificuldades de (in)formação, que nesta matéria terá que ser muito sedimentada, junto do enorme universo docente moçambicano. Repito, estou certo que estas e tantas outras dificuldades serão (ou terão já sido) ponderadas pelos responsáveis. E que serão tomadas medidas para as ultrapassar. Ou, pelo menos, minorar.

Penso que este acordo é uma inutilidade. E que deriva de uma abordagem ideológica e política poluída. E poluente. Deste modo o país gastará energias, as atenções dos seus recursos humanos, devido a uma agenda que lhe é absolutamente externa. Claro que é compreensível a ratificação do acordo, e a sua posterior introdução, pois não interessará ficar o único país com uma velha grafia. Moçambique depara-se assim com uma política de “facto consumado”. Nada ganharia em manter-se de fora do processo. Nada ganhará em entrar no processo, nisso limitando-se a não perder, a não ficar graficamente isolado.

Em Portugal resiste um movimento de cidadania contra o acordo. Vários argumentos são avançados, de diversa índole. Alguns parecem-me descabidos, até excitados: uma sacralização da grafia, como se esta não fosse por definição uma convenção historicamente mutável, como se uma alteração pudesse perigar o próprio futuro cultural do país; a consideração que tudo isto é uma cedência ao Brasil, visto como se perigoso inimigo gráfico (país onde também têm brotado algumas críticas a este processo), o velho agitar do espantalho do “inimigo externo”.

Mas outras questões são mais interessantes: como disse, a múltipla grafia do inglês nada obsta ao seu ensino internacional. E outras surgem: a perda de referências etimológicas, dado o privilégio dado à fonética. E, neste eixo, a opção por uma “pronúncia culta” que não se sabe bem o que será, ainda por cima por ter sido decidida em diálogo (“culto”?) luso-brasileiro, estanque às utilizações da língua noutros contextos. Uma problemática mais portuguesa refere que esta grafia tende a tornar mais incompreensível a ouvidos estrangeiros a nossa fonética urbana.

É óbvio que a maioria destes argumentos pouco conta para o contexto moçambicano. Mas dois serão de salientar: o facto da nova grafia, assente numa pré-definição das fonéticas “virtuosas” ignorar os múltiplos usos africanos. E o facto de não ter sido considerada a interacção, porosa, das línguas africanas e do português – ainda para mais quando o Acordo exige a realização de um Vocabulário Português. Em suma, o acordo, e todas as suas exigências, deriva de uma postura etnocêntrica, proprietária da língua portuguesa. Por parte de um reduzido núcleo intelectual e político luso-brasileiro.

Por isso, e antes do esforço de nos habituarmos à nova grafia, será importante perceber do que realmente se tratou na acção reformadora proposta por esse núcleo intelectual (ideológico e político). O acordo foi proposto por um pequeno número de especialistas, oriundos de um Brasil ditatorial e auto-encerrado, que viam virtuosa a relação privilegiada com um Portugal recentemente democrático. E de um núcleo português, incrustado na social-democracia herdeira do republicanismo colonial da I República. Figura não dita mas tutelar era o antropólogo Gilberto Freyre, ele próprio, à sua maneira glorificadora do Brasil, entendendo como virtuosa esta relação privilegiada entre os países. Da parte portuguesa, grande entusiasta do acordo, tratava-se de imaginar a língua e sua influência como factor indutor de interesses, afectos e objectivos comuns. Entenda-se, como suave substituta do império colonial, então para sempre desaparecido.

Noto que a democracia portuguesa nunca teve, por opção política e por insuficiência de capacidades estratégicas, uma real dinâmica neo-colonial, como o têm tido outras antigas potências (França, Grã-Bretanha, Rússia). Mas teve esta pequena sequela, a vontade de tornar enorme a sua língua, um imaginário sempre expresso na manipuladora utilização da frase de Pessoa “a minha pátria é a língua portuguesa”. Esse sonho senil implicou o projecto de tornar homogénea a sua grafia, como se por esta tornasse homogéneos e transitivos os contextos da sua utilização. Projecto atrasado, paroquial, e tanto o é que já três décadas passaram desde a sua aprovação sem que se consiga completar o processo.

Esperança havia que os novos “leões austrais”, Angola e Moçambique, ajudassem a travar este pobre provincianismo mumificado. Mas com outros combates se defrontam estes países, bem mais relevantes. Para eles o desaparecimento de umas pobres consoantes (não)mudas, alguns acentos, meia dúzia de maiúsculas e hífens nada são face ao mundo. E ainda menos relevantes lhes são alguns velhos tontos lusos e os fósseis brasileiros que tudo isto provocaram.


Mais sobre Acordo Ortográfico aqui.

Extraído do sítio Ma-schamba

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