José do Patrocínio |
José do Patrocínio, diretor e proprietário do jornal A Cidade do Rio, para ajudar ao pintor e escritor francês Emílio Rouède, que morava no Brasil, encomendou-lhe a tradução de um romance-folhetim. Ofereceu um tostão (cem réis) por linha. Rouède fez a tradução durante alguns dias, mas se cansou e passou a encomenda a Guimarães Passos, dando-lhe 80 réis e ficando com 20. Este também ficou com preguiça e repassou a tradução a Coelho Neto, a 60 réis por linha, embolsando 20. O romancista, naquele tempo pouco dado ao trabalho, acertou a tradução com Olavo Bilac – pagava 40 réis por linha e guardava seu vintém.
Quando Bilac soube desses acertos, decidiu vingar-se. Não dos três que se aproveitavam de seu trabalho, mas do velho barão de Paranapiacaba, poeta bissexto, antigo conselheiro do Império, sua bête noire e alvo de suas brincadeiras, a quem chamava “o barão de Nunca-mais-se-acaba” e que era amigo de Patrocínio, o dono do jornal. Numa cena do romance-folhetim que estava traduzindo, um homem entra pela janela do quarto de uma mocinha “para fazer-lhe mal”. De repente, um raio de luz mostra o rosto do sedutor – e Bilac acrescentou no texto: “Era o barão de Paranapiacaba!”
Essa história, contada em suas memórias pelo jornalista Medeiros e Albuquerque, amigo de todos eles, revela, além da esperteza dos envolvidos e da maliciosa imaginação de Olavo Bilac, a generosidade ocasional de Patrocínio e sua capacidade para atrair escritores de talento para seu jornal.
Demissão em protesto
A Cidade do Rio foi um diário influente; brilhante e caótico, como seu dono, e de vida curta, ceifada pela intransigência do militarismo dos primeiros anos da República e, principalmente, por uma orientação errática e uma gestão desordenada. Houve poucos jornais tão identificados como este com a personalidade de seu dono.
Patrocínio era filho do cônego de Campos dos Goitacazes (RJ), brilhante orador da Capela Imperial, com uma escrava de 15 anos – “uma pobre preta quitandeira de Campos”, segundo diria ele mais tarde - que lhe tinha sido cedida para ajudá-lo. Estudou farmácia e casou com a filha do capitão Emiliano Rosa Serra. Começou no jornalismo em 1877, na Gazeta de Notícias, de Ferreira de Araújo, onde escreveu “A Semana Parlamentar” e “A Semana Política”, com o pseudônimo de “Proudhomme”. Em 1878, foi enviado para informar sobre a grande seca do Ceará e no ano seguinte deu início, em sua coluna, à campanha abolicionista, junto com Joaquim Nabuco, Ferreira de Menezes, dono da Gazeta da Tarde, Ubaldino do Amaral e Francisco Paula Ney, que lhe deu fama em todo o país. Nabuco dizia que Patrocínio era um negro de gênio, “uma mistura de Espártaco e Camille Desmoulins”, numa referência ao líder da revolta dos escravos no Império Romano e ao revolucionário francês amigo de Robespierre.
Quando Ferreira de Menezes morreu, em 1881, Patrocínio, com ajuda do sogro, comprou a Gazeta da Tarde, praticamente falida e com uma circulação de apenas 1.900 exemplares, na qual continuou a pregação antiescravagista. Um contemporâneo, o alemão Carl von Koseritz, monarquista que viajou do Rio Grande do Sul à Corte pela primeira vez em 1883, ficou chocado com a desinibição do jornal. Para ele, “a Gazeta da Tarde, que trabalhava em denegrir a tudo e a todos, conquistou uma situação tão alta que roça pelo fabuloso. O senhor Patrocínio está agora se metendo pessoalmente com o Imperador e da mais insolente maneira que se possa imaginar”.
Em 1887, Patrocínio fundou A Cidade do Rio. O novo jornal, vespertino que circulava pontualmente às duas e meia da tarde – às duas horas saíam os resultados do jogo do bicho –, competindo com A Notícia. Era de corte moderno, paginação leve e clara, com títulos discretos e texto bem cuidado, cujo modelo editorial e empresarial esteve inspirado, segundo Juarez Bahia, no diário americano New York Herald. Tinha quatro páginas e custava 40 réis.
Olavo Bilac |
Com seu prestígio, Patrocínio conseguiu aliciar alguns dos melhores jornalistas da época. Como escreveu Pedro Calmon, A Cidade do Rio hospedava a literatura boêmia, com escritores como Olavo Bilac, Pardal Mallet, Raul Pompeia, Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Guimarães Passos, Medeiros e Albuquerque, a maioria deles da equipe da Gazeta de Notícias. O jornal tornou-se alvo da imprensa conservadora, cresceu rapidamente em tiragem e foi líder de vendas no Rio durante um tempo. Mas não demorou muito para que a personalidade caótica de seu proprietário se refletisse no jornal.
João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto |
Paulo Barreto, que trabalhou na Cidade de Patrocínio, seu contraparente, escreveu que ele “era irreprimível, era impetuoso (...) como certos fenômenos da natureza. (...) Preto, musculoso, bocarra aberta e pulso grosso, só teve na vida uma atitude: a de portador de raios, a de fulminante (...) ora achando-nos de gênio, ora achando-nos piores que a poeira”. E a Cidade “nada mais é do que uma simples gazeta de boêmios que se faz, um pouco pelas mesas da Pascoal e da Cailteau [duas confeitarias famosas], entre copos de cerveja e cálices de cognac, grandes frases de espírito, grandes gestos”. Acrescentou Barreto: “Os grandes escritores escreviam à luz de velas fincadas em garrafas vazias. Havia também muitas garrafas de cerveja cheias, que no fim podiam servir de castiçais”. Barreto fazia a “Crítica Literária”, sob o pseudônimo de “Claude”. Assim como outros jornalistas, desentendeu-se com a mulher e com um filho de Patrocínio e foi trabalhar na Gazeta de Notícias, onde tornou famoso o pseudônimo de João do Rio.
A situação no jornal mudou a partir de maio de 1888, com o fim da escravidão. Patrocínio, que tinha defendido a República, transformou-se em monarquista ferrenho, em gratidão à princesa Isabel, autora do decreto que libertou os escravos. Rompeu com seus antigos companheiros republicanos. A Cidade do Rio, aliando-se aos conservadores, defendeu o início de um terceiro reinado no Brasil, encabeçado pela princesa. A brusca mudança de orientação chocou a opinião pública e os leitores. Patrocínio foi chamado “o último negro vendido” no Brasil. Inconformados com a nova orientação política, vários jornalistas deixaram o diário. Olavo Bilac, Pardal Mallet, que era o redator-chefe, Luiz Murat e Raul Pompeia saíram para lançar um jornal a favor da República, o semanário A Rua, de vida curta.
Frase ferina
Segundo escreveu o redator-chefe do Jornal do Commercio, A Cidade do Rio era “escandalosamente subvencionada”, mas não disse por quem. O jornal conservava vigor e energia. No dia 15 de novembro publicou três edições informando de maneira direta e por vezes confusa, mas refletindo o calor e contradições do momento, a queda da monarquia e a proclamação da República. Patrocínio, realista, aceitou a situação e apoiou o novo regime, pelo que novamente foi acusado de inconsistente politicamente e de “vira-casaca”.
Olavo Bilac decidiu voltar para A Cidade do Rio, onde passou a ocupar o cargo de secretário do jornal. Inconformado, Pardal Mallet, que dirigia A Rua, acusou seu amigo de traidor e o desafiou para um duelo a espada, no qual ficou levemente ferido na barriga. Pouco depois, o próprio Mallet estava trabalhando de novo no jornal de Patrocínio. Bilac seria mais tarde, em 1890, correspondente da Cidade em Paris, a convite de Patrocínio. Conta que vivia “modestamente, mas com conforto” com o ordenado pago pelo jornal, pois “já era jornalista profissional”, que lhe permitia comprar alimentação, hospedagem, teatro e carro de aluguel.
A Cidade apoiou o regime republicano, mas criticou seu primeiro presidente, o marechal Deodoro da Fonseca, e principalmente Rui Barbosa, ministro da Fazenda, e sua política econômica de expansão monetária conhecida como “encilhamento”. Fez também oposição a Floriano Peixoto.
Dois anos depois de proclamada a República, Patrocínio, acusado de conspirar para depor Floriano, foi preso junto com Mallet e Bilac, e confinado em Cacuí, no alto rio Negro, no Amazonas. Mallet foi enviado a Tabatinga, também no Amazonas, e Bilac ficou preso sete meses na fortaleza da Laje, no Rio, onde reclamou do tédio e da comida; solto, teve que se esconder em Minas Gerais, durante dois anos, enquanto durou o estado de sítio na capital federal. Guimarães Passos e Luis Murat se exilaram em Buenos Aires. O jornal foi fechado durante alguns meses.
Raul Pompéia |
Quando, depois de anistiado, voltou ao Rio em agosto de 1892, Patrocínio, doente, reabriu A Cidade, e continuou com as críticas a Floriano. Nesse ano, Bilac se desentendeu com Raul Pompeia, intransigente seguidor do presidente. Pompeia sentiu-se ofendido por um artigo de chocante grosseria publicado numa revista dirigida por Bilac, e o desafiou para um duelo a espada, que não chegou a acontecer. Três anos depois, Pompeia se suicidava. A Cidade entrou numa fase de decadência. Fez oposição a Campos Salles e à política de austeridade do ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, e sofreu com isso, perdendo vários dos melhores colaboradores. No fim do mandato de Campos Salles, Patrocínio voltou a apoiar o governo. É atribuída a Murtinho a frase: “Este preto não se vende, aluga-se”. O escritor Vivaldo Coaracy disse que a frase não era original. Tinha sido usada por um estadista do Império em relação a outro mestiço. Patrocínio apoiou o governo de Prudente de Morais.
Morte em serviço
A Cidade do Rio teve uma vida irregular. Era um jornal cada vez mais improvisado, com uma gestão desordenada. Mas ainda era lido. O principal atrativo eram os “artigos de fundo” do seu diretor. “O artigo de Patrocínio tinha essencial importância. (...) Era através dele que Patrocínio exercia a advocacia da causa, qualquer que fosse, a que, na ocasião, tivesse alugado a sua pena de mestre. O artigo sustentava a folha, a casa de Patrocínio e as suas extravagâncias. (...) E era sempre uma preciosa lição de estilo ou de jornalismo, de técnica de imprensa e até mesmo de português que nos dava.” A Cidade continuava sendo uma escola. Dizia-se que o prazer de trabalhar para Patrocínio compensava a exiguidade dos salários e a irregularidade dos pagamentos.
Uma das fontes de receita foi o jogo do bicho. Todos os diários, menos o Jornal do Commercio, publicavam os resultados da loteria. Mas A Cidade, além de dar os números sorteados, divulgava um serviço adicional de tabelas e estatísticas das apostas, conhecido na redação como “o câmbio do bicho”. Muita gente só comprava o jornal para saber que bicho tinha dado e inspirar-se nos palpites para o dia seguinte, segundo Vivaldo Coaracy. Um dia, Coaracy, que trabalhava na Cidade, tirou a tabela e levou “um pito solene”: “O ‘câmbio do bicho’ era o maior incentivo de venda avulsa. Eu estava prejudicando a circulação do jornal”.
Ainda segundo Coaracy, Patrocínio, “sob a premência da necessidade da vida tumultuada e desordenada que levava, comparava-se, sem rodeios, a um advogado, com banca aberta para contratar defesa e acusações, mediante altas tarifas de serviços. A sua tribuna era o jornal”. Patrocínio, “(a)tingindo alturas geniais, em dados momentos, noutros se revelava de uma simplicidade quase infantil, capaz de atos de nobreza (e) incide por outro lado em fraquezas morais e erros de julgamento quase incompreensíveis”.
A ácida pena de Luís Edmundo passa uma opinião ainda mais negativa da personalidade de Patrocínio: “Insolente, brutal e muito desbocado”; “um polemista vibrante”, de cuja “sinceridade dizem horrores. Os homens que hoje enaltece, ataca-os amanhã. E vice-versa. Usa as opiniões como as gravatas”.
Numa das crises financeiras, o jornal perdeu as oficinas devido à execução de uma hipoteca. Reabriu o capitalista português Manuel José da Fonseca pagou suas dívidas e arrendou para ele uma velha tipografia e um prédio de dois pavimentos. Mas a vida era ainda muito difícil para o jornal e para seu proprietário. Patrocínio não conseguiu pagar e A Cidade do Rio mudou várias vezes de impressor, até definhar, em 1903. Seu dono mal sobreviveu escrevendo um folhetim semanal para A Notícia. Morreu, literalmente, com a pena na mão.
* Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição.
Extraído do sítio Observatório da Imprensa
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.