23 de junho de 2012

A QUEDA - Virgilio Piñera


Já havíamos escalado a montanha de três mil pés de altura. Não para enterrar em seu topo a garrafa nem tampouco para plantar a bandeira dos alpinistas denodados. Passados uns minutos começamos a descida. Como é de costume nestes casos, meu companheiro seguia-me atado à mesma corda que rodeava minha cintura. 

Eu havia contado exatamente trinta metros de descida quando meu companheiro, dando com seu sapato armado de grampos metálicos um chute numa pedra, perdeu o equilíbrio e, dando uma cambalhota, veio a ficar postado na minha frente. De modo que a corda, enroscada entre as minhas duas pernas, puxava com bastante violência, obrigando-me, a fim de não rodar para o abismo, a curvar as costas. 

Ele, por sua vez, tomou impulso e moveu o corpo em direção ao terreno que eu, por minha vez, deixava às minhas costas. Sua resolução não era descabelada ou absurda; antes, respondia a um profundo conhecimento dessas situações que ainda estão anotadas nos manuais. 

O ardor no movimento foi causa de uma ligeira alteração: de pronto, percebi que meu companheiro passava como um bólido por entre as minhas duas pernas e que, ato contínuo, o puxão dado pela corda amarrada, como disse, às suas costas punha-me de costas para a minha primitiva posição de descida. 

Por seu lado, ele, obedecendo sem dúvida a iguais leis físicas que eu, uma vez percorrida a distancia que a corda permitia, ficou de costas para a direção seguida por seu corpo, o que, logicamente, nos fez encontrar-nos frente a frente. Não dissemos palavra, mas sabíamos que o despenhamento seria inevitável. Com efeito, passado um tempo indefinível, começamos a rodar. Como minha única preocupação era não perder os olhos, pus todo o meu empenho em preservá-los dos terríveis efeitos da queda. Quanto a meu companheiro, sua única angústia era que sua bela barba, de um admirável cinza de vitral gótico, não chegasse à planície sequer ligeiramente empoeirada.

Então eu pus todo o meu empenho em cobrir com minhas mãos aquela parte de seu rosto coberta pela barba e ele, por sua vez, aplicou as suas sobre meus olhos. A velocidade crescia a cada momento, como é obrigatório nestes casos de corpos que caem no vazio. De pronto olhei através do ligeirissimo interstício que deixavam os dedos de meu companheiro e percebi que, nesse momento, um afiado pico levava sua cabeça, mas de pronto tive que virar a minha para comprovar que minhas pernas ficavam separadas do tronco por causa de uma rocha, de origem possivelmente calcária, cuja forma dentada cerceava o que se punha a seu alcance com a mesma perfeição de uma serra para placas de transatlanticos. 

Com algum esforço, é preciso reconhecer, íamos salvando: meu companheiro, sua bela barba, e eu, meus olhos. É verdade que, de trechos em trechos, que eu liberalmente calculo de uns cinqüenta pés, uma parte de nosso corpo separava-se de nós mesmos; por exemplo, em cinco trechos perdemos: meu companheiro, a orelha esquerda, o cotovelo direito, uma perna (não recordo qual), os testículos e o nariz; eu, de minha parte, a parte superior do tórax, a coluna vertebral, a sobrancelha esquerda, a orelha esquerda e a jugular. 

Mas isto não é nada em comparação com o que veio depois. Calculo que, a mil pés da planície, só nos restava respectivamente o que se segue: de meu companheiro, as duas mãos (mas só até o carpo) e sua bela barba cinza; de mim, as duas mãos (igualmente só até o carpo) e os olhos. Uma ligeira angústia começou a possuir-nos. E se nossas mãos fossem arrancadas por alguma pedrica? Continuamos descendo. Aproximadamente a uns dez pés da planície, a vara abandonada de um lavrador enganchou-se graciosamente nas mãos de meu companheiro, mas eu, vendo meus olhos órfãos de todo amparo, devo confessar que, para eterna, memorável vergonha minha, retirei minhas mãos de sua bela barba cinza. a fim de protegê-los de todo impacto. Não pude cobri-los, pois outra vara enganchou-se igualmente em minhas duas mãos, razão pela qual ficamos, pela primeira vez, longe um do outro em toda a descida. Mas não pude queixar-me, pois meus olhos chegavam então sãos e salvos à relva da planície e podiam ver, um pouco mais além, a bela barba cinza de meu companheiro, que resplandecia em toda a sua glória.

(1944)

Virgilio Domingo Piñera Llera (Cárdenas, 1912 – La Habana, 1979). Poeta, narrador, dramaturgo, ensayista y traductor. Es uno de los autores más importantes de la literatura cubana y el más grande autor teatral de la isla en el siglo XX. Fue fundador de las revistas Poeta (1942) y Ciclón (1955) y colaboró en muchas otras: en las cubanas Espuela de Plata, Grafos, Clavileño,Ultra, Orígenes, Gaceta del Caribe, Lyceum, Universidad de la Habana, Lunes de Revolución, La Gaceta; las argentinas Unión,Sur, Hoy, Realidad, Mundo Argentino y Anales, y las francesas Lettres Nouvelles y Les Temps Modernes. Viajó por América Latina, Estados Unidos y Europa. Figura referencial del teatro cubano y auténtico pionero del teatro del absurdo, sus piezas se representaron incluso antes que las de Ionesco. Las tres estancias en Buenos Aires en varios períodos de su vida (desde 1946 hasta 1958, aunque con interrupciones) permitieron a Piñera desempeñarse desde allí no solo como traductor, corrector de pruebas y revisor en el consulado cubano, sino también como corresponsal de Orígenes y frecuentar a autores tan diferentes como Borges, Bianco, Girondo, Macedonio Fernández, Sábato o Mallea, que ejercieron gran influencia en su formación como escritor. Borges, por ejemplo, fue el primero en publicar en Argentina un cuento suyo en la revista Anales de Buenos Aires (1947) y dio cabida a su obra también en la mítica Sur. Trabajó durante algunos años en el Departamento de Traducciones del actual Instituto Cubano del Libro, donde tradujo importantes obras de la literatura africana francófona (F. Oyono, O. Sembene), además de autores como J.-P. Sartre, B. Harding, I. Medách, etc.

Extraído do sítio FFLCH-USP

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