28 de julho de 2012

COM INTENSA PESQUISA, TRADUTORES TRABALHAM EM FLORIANÓPOLIS PARA TRANSPOR GRANDES OBRAS LITERÁRIAS - Carolina Moura

Foco no original é uma das prioridades desses profissionais, que dão voz ao diálogo cultural para além das fronteiras do idioma.

Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante traduzem obras de autores como James Joyce, com muita pesquisa e trabalho minucioso. Foto: Janine Turco/ND

Ernest Hemingway, o escritor norte-americano de estilo limpo e sem floreios, leu Fyodor Dostoievsky e foi influenciado por ele. Sem dominar a língua russa, porém, ele leu a tradução de Constance Garnett — inglesa que traduziu 71 volumes da literatura russa, e que por extensão também foi uma influência no texto de Hemingway.

Uma coisa que passa despercebida pela maioria das pessoas que andam pelas prateleiras de literatura estrangeira nas livrarias, a tradução é fundamental na literatura. “Se não fosse pela tradução, o que entendemos por cultura não existiria. Cultura é um diálogo entre culturas, e a tradução é a voz desse diálogo”, diz Sérgio Medeiros, poeta, tradutor e diretor da Editora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Ele e sua mulher, Dirce Waltrick do Amarante, publicaram recentemente “James Joyce. De santos e sábios”, coletânea de ensaios do irlandês. Eles agora trabalham em uma coletânea de cartas endereçadas a Nora Joyce, mulher do autor. Com prateleiras cheias de material de pesquisa para suas traduções, o casal tem grande rigor para manter a identidade do original. “Primeiro eu leio tudo para poder entender aquela linguagem. Aí vou tentar transpor ela para o português”, conta Dirce. “A gente tenta manter a complexidade ou a simplicidade de Joyce”, diz Sérgio, lembrando que a ciência, porém, não é exata — toda tradução é, no fim das contas, uma interpretação.

“Todo tradutor faz escolhas e elas estão presentes em todo o texto. Alguns de uma maneira mais proeminente, outras de maneira menos, mas a presença é inevitável”, diz o professor Lincoln Fernandes, do Pget (Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução) da UFSC. O que faz a diferença é como o tradutor faz essas escolhas. “Eu acho que o tradutor tem que justificar o que ele faz dentro do estilo do autor”, defende Dirce.

Linguagens do sertão

Tarefa ambiciosa é a de Berthold Zilly, alemão que trabalha na UFSC como professor visitante há um ano. Ele tem o prazo até 2015 para entregar sua tradução de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. O livro já foi traduzido para o alemão nos anos 1960 por Curt Meyer-Clason, que inclusive dialogou com o autor, mas essa tradução se demonstrou insuficiente e a editora encomendou a Zilly uma nova leitura.

“Ele [Meyer-Clason] optou por uma estratégia que eu chamaria de assimiladora, de popularizadora. Ele criou um alemão bonito, inventivo, mas de fácil acesso. Ou seja, ele não recriou o caráter semi-enigmático do livro”, diz o novo tradutor. Em seu trabalho, Zilly tenta esmiuçar o estilo único de Guimarães Rosa, com seu vocabulário próprio, cheio de neologismos, e sua sintaxe inovadora. “Primeiro você tem que entender isso, depois tem que criar em outro idioma uma linguagem tão original quanto a dele.”

A tradução é uma atividade que Zilly, hoje com 67 anos, começou aos 50. Sua tradução para o alemão de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, até então inédito nessa língua, foi um projeto que ele assumiu para melhor compreender o livro e para compartilhá-lo com seus alunos de literatura brasileira. Conseguir uma editora para publicar o texto de um autor até então desconhecido na Alemanha não foi fácil, mas teve bons resultados. “A recepção foi muito boa, quase que entusiástica. O livro foi considerado uma descoberta, ninguém esperava que fosse tão impressionante tanto em termos literários quanto em termos de analise de problemas sociais”, conta o tradutor.

Apesar da extensa pesquisa de língua portuguesa, da história brasileira, das características dos períodos, locais e personagens retratados nos livros, e da experiência sensorial de ter visitado o sertão, Zilly nega que seja possível criar uma tradução definitiva. A sua é mais uma interpretação, e virão outras.

Berhold Zilly trabalha em uma nova tradução de "Grande Sertão: Veredas" para o alemão, com o cuidado de recriar a linguagem inovadora de Guimarães Rosa. Foto: Rosane Lima/ND

De Santa Catarina para o mundo

Florianópolis se tornou um importante núcleo de tradução, e isso acontece em um momento positivo no país. “Eu acho que a gente está em um momento bastante rico na tradução literária no Brasil. E Florianópolis está vivendo uma vanguarda, é o maior centro de estudos de tradução do país”, diz o professor Walter Costa, do Pget da UFSC, a primeira das pós-graduações em tradução no Brasil a ser criada.

Quando se trata da difusão dos autores locais através da tradução para outras línguas, porém, o processo ainda está começando. Luciana Rassier, que também é professora no Pget, é um exemplo de quem investiu nesse trabalho. Em 2007 ela e o francês Jean-José Mesguen publicaram a primeira tradução de um romance completo de Salim Miguel, “Primeiro de abril: narrativas da cadeia” em francês. A segunda tradução do autor, de “Nur na escuridão” para o árabe, por Youssef Mousmar, está em andamento.

“O tradutor tem também esse papel de fazer existir na língua estrangeira um texto do autor”, diz Luciana. Daí vem a importância de traduzir autores do Sul do Brasil, uma tarefa que ela assumiu, tendo publicado em francês também “Pequod”, do gaúcho Vitor Ramil. “Assim a gente faz existir um país que não é aquele exótico, tropical. É a contracorrente, um exótico dentro do exótico”, observa ela. A boa notícia é que a Biblioteca Nacional tem um plano para investir com peso na tradução de autores brasileiros nos próximos vinte anos. É mais uma oportunidade que pode ser aproveitada pelos catarinenses.

Chico Bento americano

A tradutora Elis Liberatti, de 25 anos, decidiu propor uma tradução para o inglês dos quadrinhos da Turma da Mônica em sua dissertação de mestrado na UFSC. Ela selecionou duas histórias do personagem Chico Bento e fez sua pesquisa para tentar transpor esse personagem essencialmente brasileiro para o público infantil norte-americano. “Eu queria uma coisa mais desafiadora e o Chico Bento tem essa linguagem não padrão, que a gente chama de pseudo dialeto caipira”, diz Elis. O Chico Bento americano, chamado de Chuck Billy, fala tão caipira em inglês quanto o brasileiro em português.

Em sua dissertação de mestrado, Elis Liberatti propõe a tradução dos quadrinhos do Chico Bento para o inglês, levando em conta as adaptações culturais necessárias para atingir o público infantil norte-americano. Foto: Janine Turco/ND

Outra peculiaridade do trabalho de Elis é a linguagem visual dos quadrinhos. “Os quadrinhos têm o texto não-verbal ,que tem que complementar o texto verbal ou fazer referência, nunca pode ir contra”, diz a tradutora. Como geralmente apenas o texto escrito é adaptado, esse é mais um desafio, já que mesmo as imagens podem não ter significado universal.

Há também preocupações com a censura, o que é adequado para crianças, que pode mudar de uma cultura para outra. E a linguagem também tem especificidades. “Se você for traduzir um texto infanto-juvenil, você tem que levar em conta que esta escrevendo para um grupo que está desenvolvendo a habilidade da leitura, não pode ter muitos nomes complicados, estruturas linguísticas que possam criar uma barreira”, diz o professor Lincoln Fernandes, que orientou Elis na dissertação.


Extraído do sítio ND Online

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.