4 de julho de 2012

"ENTREVISTA IMAGINÁRIA": O POETA DESCRITO POR ELE MESMO ATRAVÉS DE SEUS TEXTOS - Luiz Orlando Carneiro

Uma "diversão literária" de Luiz Orlando Carneiro, contemporâneo de Drummond no JB.

Em 1969, quando Carlos Drummond de Andrade passou a colaborar com o Jornal do Brasil, na velha redação da Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, já trabalhava Luiz Orlando Carneiro fazia 10 anos.

Apesar de toda a admiração, Carneiro não teve uma aproximação com o cronista, reconhecidamente uma pessoa tímida e solitária. Ele ia ao jornal apenas uma vez por semana para entregar as três crônicas. Pouco falava, além do cortês cumprimento.

A falta de contato, porém, não diminuiu a admiração do jornalista pelo escritor. Foi ela que o fez, a partir da obra do ilustre mineiro, editar esta "entrevista imaginária" na qual, como ele mesmo descreve, "as perguntas são posteriores às respostas". A entrevista abaixo, que Carneiro classifica como "divertimento literário", faz parte de um livrinho em preparo com o título de "Entrevistas imaginárias".



P. - É conhecida sua aversão a repórteres. O senhor parece evitar tornar públicas suas opiniões, e não gosta de ser fotografado. Por que? 

C.D.A. - Não me peçam opinião que é impublicável, qualquer que seja o fato do dia e contraditória e louca antes de formulada. Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente minha imagem. Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas. 

P- O senhor costuma atender aos pedidos dos escritores jovens para que aprecie a qualidade de seus trabalhos? Tem paciência e ânimo para isso? 

C.D.A.- Ah, não me tragam originais para ler, para corrigir, para louvar, sobretudo para louvar. Não sou leitor do mundo, nem espelho de figuras que amam refletir-se no outro à falta de retrato interior. (…) Nem sequer li os textos das pirâmides, os textos dos sarcófagos, estou atrasadíssimo nos gregos, não conheço os Anais de Assurbanipal, como é que vou – mancebos, senhoritas – chegar à poesia de vanguarda? 

P- O senhor parece mesmo gostar é de ficar em paz. Que tipo de paz? 

C.D.A.- Quero a paz das estepes, a paz dos descampados, a paz do Pico de Itabira quando havia Pico de Itabira, a paz de cima das Agulhas Negras, a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho, a paz da paz. 

P- Afrânio Coutinho escreveu que, na sua obra poética, “Itabira assume um papel mítico”. Itabira ainda é, para o senhor, algo mais que “uma fotografia na parede”? 

C.D.A.- Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas (…). E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. 

P- Um outro estudioso de sua obra disse que o que o domina é o sentido trágico da vida, disfarçado sob o véu do humor e da ironia. O senhor concorda com essa apreciação? 

C.D.A- Tenho apenas duas mão e o sentimento do mundo. 

P- E além das mãos? Um coração? 

C.D.A.- Não, meu coração não é maior que o mundo (…). Nele não cabem nem minhas dores (…). Só agora vejo que nele nem cabem os homens(...). Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que os homens se comunicam. 

P- E como sente a presença – ou a ausência – de Deus? 

C.D.A.- No mais alto ramo Deus está pousado com uma garra apenas e fita o mundo. Do mais alto ramo desfere voo e sai por aí bicando as coisas, indiferente às coisas bicadas, encantadas. Deus rumina que fazer, acaso. Mais um terremoto? De que proporções? Uma nova guerra? De quantas nações? Que margem ceder ao capricho do homem? Vai nascer um artista? Nascerão idiotas? Surgirão robôs? (…) O homem arrependo-me da criação de Deus, mas agora é tarde. 

P- Sua obra poética não revela se o homem Carlos experimentou alguma paixão não correspondida ou se cultivou muitos amores. Essa discrição foi proposital? 

C.D.A.- Não cantarei amores que não tenho e, quando tive, nunca celebrei(...). Deus me deu um amor no tempo de madureza, quando os frutos não são colhidos ou sabem a verme. Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me este amor maduro, e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor. 

P- Do patrimônio que possui o que lhe é mais caro? 

C.D.A.- Duas riquezas: Minas e o vocábulo. Ir de uma a outra, recolhendo o fubá, o ferro, o substantivo, o som. 

P- E como o poeta garimpa o vocábulo, o substantivo, a palavra? 

C.D.A.- As palavras não nascem amarradas, elas saltam, se beijam, se dissolvem, no céu livre por vezes um desenho, são puras, largas, autênticas, indevassáveis (…). Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. 

P- Como encara a marcha do tempo, que a folhinha anota inexoravelmente? 

C.D.A.- Sinto que o tempo sobre mim abate sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...Uma aceitação maior de tudo, e o medo de novas descobertas (…). Há muito suspeitei o velho em mim. Ainda criança, já me atormentava. Hoje estou só. Nenhum menino salta de minha vida, para restaurá-la. 

P- Tal sensação de solidão e o tormento do tempo que se abate sobre o senhor levam-no a uma certa depressão? 

C.D.A.- Falta pouco para acabar o uso desta mesa pela manhã (…). Falta pouco para acabar a própria obrigação de roupa(...). Falta pouco para o mundo acabar(...). 

P- O senhor está, de certa forma, desejando que a morte venha logo? Está preparado? 

C.D.A.- (…) que a hora esperada não seja vil, manchada de medo, submissão ou cálculo. 

P- O senhor chegou a imaginar ou a sonhar, algum dia, a sua própria morte? 

C.D.A.- Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo, eu no centro. Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis pela expressão corporal e pelo que diziam no silêncio de suas roupas além da moda e de tecidos (…). Nenhum tinha rosto. O que diziam escusava resposta, ficava parado, suspenso no salão, objeto denso, tranquilo. Notei um lugar vazio na roda. Lentamente fui ocupá-lo. Surgiram todos os rostos, iluminados.

Extraído do sítio Jornal do Brasil

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