2 de julho de 2012

QUATRO AÇORIANOS NA VANGUARDA DO PENSAMENTO PORTUGUÊS - Nuno Vieira

O professor, autor e conceituado investigador do Centro de Literatura e Cultura Lusófonas da Faculdade de Letras de Lisboa (CLEPUL) – Miguel Real – em março de 2011, publicou um volumoso manual universitário (1029 páginas) intitulado O Pensamento Português Contemporâneo 1890-2010, com o subtítulo de O Labirinto da Razão e a Fome de Deus, em publicação de Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Miguel Real debruça-se sobre a reflexão filosófica escrita em Portugal nos séculos XIX, XX e XXI e “analisa dezenas de autores, correntes de pensamento, grupos reunidos à volta de publicações, tendências e vozes isoladas, divididas em três fases principais...”. O investigador inclui quatro autores açorianos na lista dos grandes pensadores portugueses: Teófilo Braga (racionalismo), Antero de Quental (do espiritualismo metafísico ao racionalismo), José Enes (a decadência do providencialismo e a emergência de um novo racionalismo) e Onésimo de Almeida (vertente modernista).

Teófilo de Braga, (1843-1924), é natural de Ponta Delgada e teve o privilégio de em vida poder apreciar "a realização prática, política e pedagógica" das suas ideias. Foi chefe do governo em 1911 e presidente da República em 1915. A sua vida e ideologia, não obstante vastamente atacadas, foram de grande impacto na política do Estado. O autor não hesita em afirmar que "nenhuma atitude de um pensador português contemporâneo possuiu uma tão forte extensão e consequências sociais como as de Teófilo de Braga".

Teófilo de Braga marca o pensamento português do século XX através de cinco atitudes revolucionárias: 

1) A ciência é axiologicamente mais importante que a filosofia. 

2) A razão é mais importante que o espírito. 

3) O que a Europa considera culturalmente moderno é mais importante do que o passado de Portugal. 

4) A Europa é o destino de Portugal. 

5) A República é superior à Monarquia.

Miguel Real afirma que a base essencial do pensamento de Teófilo de Braga é constituída pelos estudos de Direito e Literatura no qual mais tarde "se enxertarão o republicanismo e o positivismo, não como apêndices, mas como ramos sólidos e duradouros". 

Antero de Quental, (1842-1891), nascido também em Ponta Delgada, é considerado por Miguel Real "como o pensador português mais completo da segunda metade do século XIX". No campo das ideias e no da poesia contemporânea equipara-se respetivamente a Teófilo de Braga e a Fernando Pessoa. Parafraseando Miguel Real, a influência de Antero fez-se sentir nas instituições filosóficas e educativas e no dia a dia da República.

A singularidade da obra de Antero de Quental não permitiu que o autor tivesse discípulos; é uma obra para a qual não há passado nem futuro próximo, "exatamente como aconteceu com a obra poética de Camões e a obra completa de Fernando Pessoa". É uma obra que consta de um número infinito de admiradores e escritores temáticos, mas sem precursores. É assim que, entre outros, gradualmente se descobrem diferentes Anteros: O Antero do inconsciente, o Antero existencialmente amargurado pela ideia de Deus, o Antero noturno e luminoso, o Antero sumamente espiritualista, o Antero decadentista, o Antero alimentado por uma sede universal de justiça, o Antero utopista.

Nas palavras de Miguel Real: "Antero de Quental estatui-se, no pensamento português contemporâneo, como uma espécie de tufão revolucionário, cujo centro suga para si todos os traços e vertentes da cultura portuguesa de então (literatura, religião, filosofia, história, política ou seja, conflito monarquia-república, conflito positivismo-metafísica, conflito poesia romântica e modernismo, conflito espiritualismo clássico, espiritualismo moderno e materialismo evolucionista, conflito história imperial de Portugal e história decadentista de Portugal...)".

Miguel Real explica o suicídio de Antero de Quental nos seguintes termos: "É do seio desta tensão que nasce o seu suicídio: a ânsia de Absoluto, de Infinito, de Eternidade, de posse e domínio de uma Ideia, refletida primeiro na virulência apocalíptica de revolução e da rutura, e, depois, a partir de 1975, regressada em forma de profunda angústia, expressa nas ideias de Deus e de Morte nos seus Sonetos."

José Enes nasceu nas Lajes do Pico em 1924 e reside em Lisboa. Doutorou-se em escolástica tomista na Universidade Gregoriana de Roma. Foi professor no Seminário de Angra e na Universidade Católica Portuguesa; for vice-reitor da Universidade Aberta e professor fundador e primeiro reitor da Universidade dos Açores. A qualidade e originalidade da sua obra levam Miguel Real a considerá-lo como "o mais importante pensador açoriano posterior a Antero de Quental e Teófilo de Braga e um dos mais importantes filósofos portugueses do século XX". A sua vida pública e a sua obra escrita foram absorvidas por três paixões: a Poesia, os Açores e a Filosofia. 

Nesta sua publicação, Miguel Real refere-se a duas obras de José Enes. A primeira é a Autonomia da Arte cuja "questão central de todo o livro é enunciada na página 17: O núcleo, ao redor do qual gira este diálogo, (entre "a arte pela arte" e "arte social" através da distinção moral e ontológica entre verdade e beleza) é saber se o artista, quando elabora uma obra de arte, só há de seguir a luz de critérios artísticos, ou se pode ou deve obedecer a critérios morais, filosóficos, religiosos, políticos, pedagógicos, científicos, técnicos, sem prejudicar o valor artístico da obra de arte. " 

A segunda obra - À Porta do Ser - "revolucionou radicalmente o pensamento filosófico religioso e institucional português... e institui-se como a tese de doutoramento mais importante do século XX no campo da filosofia...". O autor explica: À Porta do Ser designa o ex-sistir do intuito abrindo-se expectante e perguntativamente, no estado de vigília e através do sentir, ao re-sistir da coisa. Este é o núcleo experiencial. Nele se processa a apercepção ontológica na qual o intuito pergunta, verifica, ratifica e aceita o ser dos seres na congenitinidade e comunidade do mesmo mundo.

O pensamento de José Enes fundamenta-se nos seguintes três pontos: 

1. O intuito. 

2. O sentir como conaturalidade do homem ao mundo. 

3. A metáfora como motor criador da linguagem e verdadeira expressão do Ser. 

O filósofo ao falar do intuito afirma que "o primeiro ato da inteligência pelo só olhar penetra, pelo só ver capta, pelo só mirar percebe, pelo só fitar apreende, pelo só fixar compreende, pelo só guardar retém, fazendo tudo isto intui, e intuindo protege [o Ser]."

As desconstruções filológicas introduzidas por José Enes constituem um enriquecimento do léxico da língua portuguesa. – José Enes, nas palavras de Miguel Real é "um autor escasso, mas um filósofo abundante".

Onésimo T. Almeida, também natural de São Miguel e aluno de José Enes, reside em Providence, no Estado de Rhode Island, onde é professor na Universidade Brown. Miguel Real considera tarefa difícil "demarcar com nitidez a singularidade de Onésimo Teotónio de Almeida no panorama do pensamento português" porquanto, além do Onésimocronista cultural e ficcionista, existem dois outros Onésimos – o filósofo e o pensador da história intelectual portuguesa. 

Como filósofo, esclarece Miguel Real que Onésimo evidencia "um realismo pragmático, aberto à permanente inovação, como se estatuía o realismo auroral de Aristóteles". Esta é a descrição que Miguel Real faz de Onésimo: “Realista na atitude em filosofia; realista no estilo em literatura; culturalista na análise de temas de ciências sociais; culturalista no estabelecimento da forma literária dos seus escritos ficcionais – eis, em síntese, Onésimo como um todo, desde que acrescente, quanto ao estilo, o jogo irónico". Continua: "Inserido na tradição da filosofia americana, sem porém perfilhar uma escola precisa, Onésimo privilegia tanto a análise rigorosa da linguagem (o sentido de conceito) quanto o critério determinante e último do uso da palavra (Wittgenstein) como fixador semântico cultural e social do significado".

O seu léxico filosófico é composto de vocabulário comum. A sua ficção demonstra um background profundamente cultural com referências a "títulos de livros ou nomes de autores da cultura portuguesa, europeia e americana". Contrariamente à ironia séria dominante nos escritores portugueses, "a ironia de Onésimo possui um caráter ético e aproxima-se da de algumas personagens de Gil Vicente: trata-se da ironia estoico-epicurista de quem não se leva excessivamente a sério...".

Ainda, em referência à ironia de Onésimo, Miguel Real escreve: “Não existe melhor exemplo da ironia como postura sentimental e racional de Onésimo que o remate da história narrada na crónica "Eu, Kofi Anão": "O David, por exemplo, ia para uma reunião pró-Israel. A Sahida ia também a outra. Pró-Àrabe. Nenhum deles tinha carro. Dei boleia aos dois".

As obras filosóficas mais importantes de Onésimo são: The Concept of Idelogy (1980), De Marx a Darwin (2010) e o ensaio "Modernidade, Pós-Modernidade e Outras Nublosidades" (2006). Este ensaio "é notável pelo carregamento de conhecimentos acumulados e pela profunda análise a que sujeita o pós-modernismo...". "...as análises filosóficas de Onésimo comportam a existência de dois planos: um, o plano da existência, o que é, linguística e humanamente objetivo... o outro, o que deve ser, subjetivo, da ordem da culturalidade, relativista segundo quadros sociais e informações doutrinárias e educativas, consubstanciadas em credos e convicções individuais e coletivas." Em paráfrase, no que se refere à ausência de uma fundamentação racional última e exclusiva para a ética (Deus, a Razão, o Bem Absoluto, a Justiça Absoluta...), Onésimo adverte que o filósofo deve usar o "(re)conhecimento da ignorância como saudável atitude fundacional e acrescenta não possuir  respostas globais nem globalizantes, que estas procedem mais de um afã humano ilusório de cerrar a esfera do conhecimento, tranquilizando a consciência, do que de um verdadeiro, rigoroso e fundamentado conhecimento da realidade."

Os seguintes são alguns dos tópicos filosófico-culturais de Onésimo: a questão da origem dos valores, o conceito de ideologia, a questão da identidade, o “quando” e o “como” da afirmação de Portugal no campo cientifico e a existência de uma literatura açoriana. As palavras são de Miguel Real: “Em conjunto com Joaquim Barradas de Carvalho e Luís de Albuquerque, Onésimo tem sido o autor que nos seus estudos, mais insistentemente tem valorizado a prestação científica portuguesa na aurora da ciência moderna”. 

Onésimo traça, desta maneira, o seu percurso existencial: que “só se consciencializou micaelense quando foi estudar para Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira; quando partiu para Lisboa, constatou que era açoriano, e na 'Europa senti-me português. Na América, reconheci-me europeu'.” Miguel Real, no contexto da sua obra, conclui: “Onésimo é, simultaneamente... açoriano, português, europeu e americano, tendo recebido, portanto, forte influência de quatro diferentes padrões culturais, mentalidades sociais e mundividências éticas, nenhum rejeitando e todos integrando, porventura privilegiando maximamente os padrões açoriano e americano”.

Extraído do sítio A União

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