6 de julho de 2012

SE EU FOSSE CONSULTADO - Carlos Drummond de Andrade

Durante os 15 anos em que o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade escreveu para o Jornal do Brasil – 1969 a 1984 - o país convivia com o regime militar e persistia a censura à imprensa. Ainda assim, ele conseguia nas suas crônicas, de forma dissimulada, e muitas vezes irônicas, criticar a ditadura.

Aconteceu na coluna do dia 14 de abril de 1977, que  o JB republicou na homenagem que faz ao poeta que, em outubro, completaria 110 anos, motivo que o fará ser reverenciado na 10ª Feira Literária de Parati. 

Na véspera, 13 de abril de 1977, o governo de Ernesto Geisel – general que ocupava a presidência da República – editou emendas constitucionais que ficaram conhecidas como “Pacote de Abril”. As medidas criaram os chamados “senadores biônicos” ao retirarem dos eleitores o direito de, no pleito de 1978, escolherem a metade dos senadores que deveriam ser eleitos. A escolha de um terço do Senado foi feita por um colégio eleitoral montado de forma a garantir a maioria ao governo militar naquela casa legislativa.

Página do JB com a crônica "Se eu fosse consultado", publicada em 14 de abril de 1977 
Quinta-feira, 14 de abril de 1977

Se me dessem a honra de ouvir-me sobre as reformas políticas, eu recomendaria uma ideia bem mais revolucionárias do que as da própria Revolução. E muito mais salutar: a eleição integral, em que todos os brasileiros, mas todos, sem exceção das crianças, hoje tão sabidas, escolhessem seus representantes e dirigente, sob a forma de voto mental absoluto, sem papagaiadas formalísticas.

Os mandatos teriam a duração exemplar de 24 horas, o que eliminaria angústias e infartos, e poderiam ser, não digo cassados, pois julgo a expressão extremamente antipática, mas revogados, caso no fluir dos minutos o eleitor achasse que fizera má escolha. Em compensação, poderiam ser renovados na manhã seguinte e nas outras manhãs, sempre que o eleitor se mantivesse contente com os mandatários e não quisesse experimentar outros. Desta maneira teríamos a cada sol, ou a cada dia de chuva, governo e representação popular novos, que, se fossem ótimos, poderiam ser confirmados quando o galo cantasse outra vez (o galo ou a serraria do bairro), e, caso não dessem no couro, teriam feito o menor mal possível à mente do seu eleitor.

Já sei que impugnariam o meu projeto, apontando-lhe mil inconvenientes, entre os quais o de provocar a anarquia governamental e legislativa, pois não haveria um só presidente, e sim talvez milhões, dada a tendência de muito eleitor a votar em si mesmo, o que se repetiria para a eleição para governadores, senadores, deputados, prefeitos e vereadores. Podendo até dar-se o caso de um mesmo indivíduo eleger-se simultaneamente para todas essas funções. Como governar, como elaborar leis desta maneira?

Bem, eu já previa esta objeção principal, como tantas outras, e afirmo que a explanação da ideia fará com que ela rutile em seu justo e convincente esplendor. Os órgãos políticos assim constituídos não trariam a menor perturbação à vida do país. Pelo contrário, só poderiam ofertar-lhe benefícios, pela soma de boas influências de cada eleito, no ânimo de seu respectivo eleitor. A democracia funcionando dentro de nós, com eficácia, e não supostamente do lado de fora, sujeita a esbarrões e desvios. Nisso consiste a beleza do meu sistema. 

Eu, por exemplo, me daria o prazer, ou o privilégio, de ser governado em 1° de janeiro por mestre Alceu Amoroso Lima. Para renovação da alegria, meu presidente no dia 2 seria Maria Clara Machado (Que diabo, então mulher inteligente não pode assumir o posto?) Depois seria a vez de César Lates, Vinícius de Moraes, Paulo Duarte, Prudente de Morais, neto, essa folha-de-malva que se chama Henriqueta Lisboa, Aliomar Baleeiro, Luis da Camara Cascudo, Fayga Ostrower, Pedro Nava, Francisco Mignone, Enrico Bianco, Eliseth Cardoso, Orígenes Lessa, Fernanda Montenegro ... Tudo gente boa, de respeito. E de imaginação. Estes, e outros assim, os meus presidentes ao longo do ano. Meus vizinhos escolheriam os deles.

Ninguém brigando por motivo de ambição. Em santa paz, cada qual seria governado, orientado, instigado pela figura de sua dileção. Por serem de jurisdição limitada ao âmbito das pessoas que os elegessem, não colidiriam entre si tantos presidentes, situados na extensão infinita ( e mínima) de nossas preferências pessoais. Todos nós, eleitores, nos sentiríamos impelidos, na esfera individual, a fazer o melhor possível, sob esse comando abstrato. E vivendo e trabalhando cada um de nós ao influxo de tal regência moral, este seria um país que não precisaria criar calos nos pé e na alma para ir pra frente.

Bem, insistirão ainda os opositores: E quem governaria de fato o Brasil, quem faria leis para serem realmente executadas? Ora, pergunta vã. Se na prática tais poderes podem ser concentrados numa só pessoa, minha proposta consiste apenas em estender esta faculdade, no plano ideal, que também conta, a todos os integrantes da comunidade. Sem bulha nem ameaça à segurança nacional, e com plena consciência de todo mundo.


Extraído do sítio Jornal do Brasil

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