Àquele que tem pretensões literárias, que pretende apresentar-se como herdeiro de Stendhal e Flaubert, ou Melville e Henry James, nada é mais ruinoso do que fazer mais sucesso como “historiador” do que como escritor. Gore Vidal era uma espécie de Edward Gibbon americano. A temática homossexual transformou pelo menos dois de seus livros, “A Cidade e o Pilar” e “Myra Breckinridge”, em sucesso editorial, mas, nesse campo, perdeu, para outros autores, como James Baldwin e mesmo Edmund White (as memórias deste, “City Boy — Minha Vida em Nova York”, são divertidas, sem a “assepsia” de Vidal ao narrar a própria homossexualidade. Vidal é sempre malicioso ao dissecar a vida alheia, como a homossexualidade de Tennessee Williams e a suposta bissexualidade de Bob Kennedy, que teria partilhado um “soldado” com Rudolf Nureyev). Mas o sucesso absoluto de Vidal advém mais de sua literatura histórica e, para seu desconforto, de sua crítica literária corrosiva e, às vezes, precisa. “Criação”, sobre a Grécia, “Juliano”, sobre Roma, e “Lincoln” são livros extraordinários, como registro histórico, uma história das mentalidades, mas, em termos literários, tão tradicionais como a prosa de Balzac, com a diferença de que, no francês, a história “é” literatura.
Vidal é apontado como tendo ódio pelos Estados Unidos. Talvez seja mais adequado dizer que tinha ódio mais pelo que avaliava como “mitologia americana” — a democracia com dois partidos de perfis similares parecia-lhe um regime de partido único, portanto, totalitário (o que é falso) — e por alguns políticos. Seus sete livros sobre a história americana, começando com “Lincoln” e chegando até Franklin D. Roosevelt, com “A Era Dourada”, antes passando pela construção do Império e por sua meca cinematográfica, Hollywood, são, no geral, exemplares. E revelam mais paixão do que ódio pelo país. Lincoln, por exemplo, sai ileso do romance-biografia. Mesmo o Lincoln mitificado, o articulador habilidoso, que nomeava adversários para o secretariado, de outras biografias aparece no romance. “A Era Dourada” fornece um painel vívido da história do período em que os Estados Unidos foram administrados por Roosevelt. Não há dúvida: o painel é esplêndido, mas, comparado com “Tempos Muito Estranhos — Franklin e Eleanor Roosevelt: O Front da Casa Branca na Segunda Guerra Mundial”, da jornalista Doris Kearns Goodwin, se ganha em graça, até em perspicácia, perde em termos de apuração precisa. A comparação com o livro de Goodwin sugere que Vidal no geral é rigoroso, mesmo quando parece que está mais opinando que relatando histórias verdadeiras, mas às vezes há uma certa flacidez fatual no livro sobre a “era” Roosevelt. As lacunas históricas são preenchidas por informações que, apresentadas como exatas, são, na verdade, opiniões — resultado muito mais de ampliação de fofocas de alcova ou do submundo. Goodwin reposiciona os fatos, restaura linguagens e não abdica da fofoca, mas apresentando fontes e, quando não é possível, não é conclusiva. Vidal (ab)usa (d)a imaginação quando falha a documentação. O romance sobre Lincoln é quase sempre bem informado, mas tantos anos depois de sua publicação, biografias e estudos (um deles de Goodwin: “Time de Rivais”) mais bem pesquisados dataram o livro de Vidal, apesar dos grandes momentos, do quadro vívido de Lincoln se manifestando.
No livro “De Fato e De Ficção — Ensaios Contra a Corrente” (Companhia das Letras, 324 páginas, tradução de Heloisa Jahn), no texto “Uma Nota Sobre Abraham Lincoln”, Vidal cita Edmund Wilson, autor de um belo artigo sobre o presidente americano como escritor e precursor da prosa enxuta de Mark Twain e Hemingway: “Há momentos em que nos sentimos tentados a achar que a coisa mais cruel que aconteceu a Lincoln desde que foi alvejado por Booth foi cair nas mãos de Carl Sandburg”. Vidal concorda — Sandburg seria um “biógrafo de péssima qualidade” —, diz que o presidente americano é “um dos homens mais interessantes e sutis da história mundial”, menciona William Herndon, sócio de Lincoln num escritório de advocacia: “Ele era o pensador mais contínuo e severo da América. Lia pouco, mas com um objetivo. A política era o seu Paraíso e a metafísica, o seu Inferno”, e acrescenta: “Lincoln leu e releu Shakespeare; estudou os comentários legais de Blackstone. E pronto. As biografias o entediavam; não lia romances. Mesmo assim, (...) tornou-se um mestre de nossa difícil língua, e a estranha música de suas frases não se parece com a de ninguém mais — com a possível exceção de Walt Whitman num dia bom e não choroso”. Lincoln, ao contrário do que costumam apresentar, não era modesto. “Nenhum grande homem é modesto. O que homens como Chase e Summer nunca puderam perdoar nele foi sua arrogância intelectual e sua presunção inconsciente de superioridade”, disse John Gray, secretário de Lincoln. “O Lincoln da realidade era frio e ponderado, meditativo e brilhante”, corrobora Vidal. Cá entre nós, o ensaio é do balacobaco, mas perde, ao analisar o brilhantismo intelectual de Lincoln, para dois ensaios clássicos de Edmund Wilson publicados em “Onze Ensaios” (Companhia das Letras, 333 páginas, tradução de José Paulo Paes) — “Abraham Lincoln” e “O Aprimoramento da Prosa Americana”.
Os ensaios e as memórias, “Palimpsesto”, são uma delícia. Quem aprecia filmes, ou acredita que existe “autoria” em cinema — uma sub-arte que “fala” mais aos sentidos do que à razão —, deve ler “Quem faz o cinema?” O cinema “é incapaz de transmitir ideias complexas através de palavras, ou mesmo, paradoxalmente, um diálogo no sentido socrático”. Cita Faulkner como “o mais cínico” dos escritores que passaram por Hollywood. “Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto”, resume Vidal o “ideário” do autor de “O Som e a Fúria” em Hollywood.
Um de seus ensaios mais notáveis é “O Caso F. Scott Fitzgerald”. É um dissecação implacável de um escritor genial mas aparentemente sempre “incompleto”. Escreve sobre Edmund Wilson e Thorton Wilder, que avalia como “um dos poucos escritores excelentes que os Estados Unidos já produziram”.
Citei o romancista-historiador, o ensaísta e o memorialista, sempre brilhante e prazeroso de ser ler, mas e o escritor “puro”? Vidal desancou um romance de Updike, com uma acidez descomunal. O sucesso de Updike, que trafegava bem do registro puramente literário para a reconstrução do modo de vida do americano de classe média, certamente incomodava o autor de “Juliano”. Por mais que tenha compreendido a mentalidade do americano médio, Upkide sempre foi tratado como escritor, não como “historiador” ou “sociólogo”, pelos críticos. Vidal também queria ser tratado assim — como Melville, Hawthorne, Henry James, Fitzgerald, Faulkner, Hemingway, Salinger, Saul Bellow, Updike, Philip Roth, Don DeLillo, Thomas Pynchon, Joyce Carol Oates e Richard Ford. Como escritor, é provável que está no mesmo nível de Norman Mailer e Truman Capote. Como crítico, apesar da excelência, fica aquém de Edmund Wilson e, quem sabe, Lionel Trilling. Ele não tem um “O Castelo de Axel”, melhor livro de Wilson, escrito em cima da hora, quando os livros de Proust e Joyce estavam “saindo” do prelo.
Como a de Faulkner, a vida de Vidal é um palimpsesto, trabalhado ardilosamente para confundir e enganar os futuros biógrafos.
Extraído do sítio Revista Bula
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