14 de agosto de 2012

GORE VIDAL, APESAR DA PRETENSÃO, MORREU SEM ESCREVER O GRANDE ROMANCE AMERICANO - Euler de França Belém


Àquele que tem pretensões literárias, que pretende apresentar-se como herdeiro de Stendhal e Flau­bert, ou Melville e Henry Ja­mes, na­da é mais ruinoso do que fazer mais sucesso como “historiador” do que como escritor. Gore Vidal era uma espécie de Edward Gibbon a­mericano. A temática homossexual transformou pelo menos dois de seus livros, “A Cidade e o Pilar” e “My­ra Breckinridge”, em sucesso editorial, mas, nesse campo, perdeu, para outros autores, como James Baldwin e mesmo Edmund White (as memórias deste, “City Boy — Minha Vida em Nova York”, são divertidas, sem a “assepsia” de Vidal ao narrar a própria homossexualidade. Vidal é sempre malicioso ao dissecar a vida alheia, como a homossexualidade de Tennessee Williams e a suposta bissexualidade de Bob Kennedy, que teria partilhado um “soldado” com Rudolf Nureyev). Mas o sucesso absoluto de Vidal advém mais de sua literatura histórica e, para seu desconforto, de sua crítica literária corrosiva e, às vezes, precisa. “Cri­ação”, sobre a Grécia, “Ju­li­ano”, sobre Roma, e “Lincoln” são livros extraordinários, como registro histórico, uma história das mentalidades, mas, em termos literários, tão tradicionais como a prosa de Balzac, com a diferença de que, no francês, a história “é” literatura.

Vidal é apontado como tendo ódio pelos Estados Unidos. Talvez seja mais adequado dizer que tinha ódio mais pelo que avaliava como “mitologia americana” — a democracia com dois partidos de perfis similares parecia-lhe um regime de partido único, portanto, totalitário (o que é falso) — e por alguns políticos. Seus sete livros sobre a história americana, começando com “Lin­coln” e chegando até Franklin D. Roosevelt, com “A Era Dou­rada”, antes passando pela construção do Império e por sua meca cinematográfica, Hollywood, são, no geral, exemplares. E revelam mais paixão do que ódio pelo país. Lin­coln, por exemplo, sai ileso do romance-biografia. Mesmo o Lin­coln mitificado, o articulador habilidoso, que nomeava adversários para o secretariado, de outras biografias aparece no romance. “A Era Dou­rada” fornece um painel vívido da história do período em que os Es­tados Unidos foram administrados por Roosevelt. Não há dúvida: o painel é esplêndido, mas, comparado com “Tempos Muito Es­tranhos — Franklin e Eleanor Roosevelt: O Front da Casa Branca na Segunda Guerra Mundial”, da jornalista Do­ris Kearns Goodwin, se ganha em graça, até em perspicácia, perde em termos de apuração precisa. A comparação com o livro de Go­odwin sugere que Vidal no geral é rigoroso, mesmo quando parece que está mais opinando que relatando histórias verdadeiras, mas às vezes há uma certa flacidez fatual no livro sobre a “era” Ro­ose­velt. As lacunas his­tóricas são preenchidas por informações que, apresentadas como exatas, são, na verdade, opiniões — resultado muito mais de ampliação de fofocas de alcova ou do submundo. Go­odwin reposiciona os fatos, restaura linguagens e não abdica da fofoca, mas apresentando fontes e, quando não é possível, não é conclusiva. Vidal (ab)usa (d)a imaginação quando falha a documentação. O romance sobre Lincoln é quase sempre bem informado, mas tantos anos depois de sua publicação, bio­grafias e estudos (um deles de Goodwin: “Time de Rivais”) mais bem pesquisados dataram o livro de Vidal, apesar dos grandes mo­men­tos, do quadro vívido de Lin­coln se manifestando.

No livro “De Fato e De Ficção — Ensaios Contra a Corrente” (Companhia das Letras, 324 páginas, tradução de Heloisa Jahn), no texto “Uma Nota Sobre Abraham Lin­coln”, Vidal cita Edmund Wilson, autor de um belo artigo sobre o presidente americano como escritor e precursor da prosa enxuta de Mark Twain e Hemingway: “Há momentos em que nos sentimos tentados a achar que a coisa mais cruel que a­con­teceu a Lincoln desde que foi alvejado por Booth foi cair nas mãos de Carl Sandburg”. Vidal concorda — Sandburg seria um “biógrafo de péssima qualidade” —, diz que o presidente americano é “um dos homens mais interessantes e sutis da história mundial”, menciona William Herndon, sócio de Lincoln num escritório de advocacia: “Ele era o pensador mais contínuo e severo da América. Lia pouco, mas com um objetivo. A política era o seu Paraíso e a metafísica, o seu Inferno”, e a­cres­centa: “Lincoln leu e releu Shakespeare; estudou os comentários legais de Blackstone. E pronto. As biografias o entediavam; não lia romances. Mesmo assim, (...) tornou-se um mestre de nossa difícil língua, e a estranha música de suas frases não se parece com a de ninguém mais — com a possível exceção de Walt Whitman num dia bom e não choroso”. Lincoln, ao contrário do que costumam apresentar, não era modesto. “Nenhum grande homem é modesto. O que homens como Chase e Summer nunca puderam perdoar nele foi sua arrogância intelectual e sua presunção inconsciente de superioridade”, disse John Gray, secretário de Lincoln. “O Lincoln da realidade era frio e ponderado, meditativo e brilhante”, corrobora Vidal. Cá entre nós, o ensaio é do balacobaco, mas perde, ao analisar o brilhantismo intelectual de Lincoln, para dois ensaios clássicos de Edmund Wilson publicados em “Onze Ensaios” (Companhia das Letras, 333 páginas, tradução de José Paulo Paes) — “Abraham Lincoln” e “O Aprimoramento da Pro­sa Americana”.

Os ensaios e as memórias, “Palim­psesto”, são uma delícia. Quem aprecia filmes, ou acredita que existe “autoria” em cinema — uma sub-arte que “fala” mais aos sentidos do que à razão —, deve ler “Quem faz o cinema?” O cinema “é incapaz de transmitir ideias complexas através de palavras, ou mesmo, paradoxalmente, um diálogo no sentido socrático”. Cita Faulkner como “o mais cínico” dos escritores que pas­saram por Hol­lywood. “Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto”, resume Vidal o “ideário” do autor de “O Som e a Fúria” em Hollywood.

Um de seus ensaios mais notáveis é “O Caso F. Scott Fitzgerald”. É um dissecação implacável de um escritor genial mas aparentemente sempre “incompleto”. Escreve sobre Edmund Wilson e Thorton Wilder, que avalia como “um dos poucos escritores excelentes que os Estados Unidos já produziram”.

Citei o romancista-historiador, o ensaísta e o memorialista, sempre brilhante e prazeroso de ser ler, mas e o escritor “puro”? Vidal desancou um romance de Updike, com uma acidez descomunal. O sucesso de Updike, que trafegava bem do registro puramente literário para a reconstrução do modo de vida do americano de classe média, certamente incomodava o autor de “Juliano”. Por mais que tenha compreendido a mentalidade do americano médio, Upkide sempre foi tratado como escritor, não como “historiador” ou “sociólogo”, pelos críticos. Vidal também queria ser tratado assim — como Melville, Hawthorne, Henry James, Fitzgerald, Faulkner, He­mingway, Salinger, Saul Bellow, Updike, Philip Roth, Don DeLillo, Thomas Pynchon, Joyce Carol Oates e Richard Ford. Como escritor, é provável que está no mesmo nível de Norman Mailer e Truman Capote. Como crítico, apesar da excelência, fica aquém de Edmund Wilson e, quem sabe, Lionel Tril­ling. Ele não tem um “O Cas­telo de Axel”, melhor livro de Wil­son, es­crito em cima da hora, quan­do os livros de Proust e Joyce estavam “sa­indo” do prelo.

Como a de Faulkner, a vida de Vidal é um palimpsesto, trabalhado ardilosamente para confundir e enganar os futuros biógrafos.

Extraído do sítio Revista Bula

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