31 de agosto de 2012

IMPORTANTE OBRA DA LITERATURA RUSSA GANHA EDIÇÃO EM PORTUGUÊS - Bernardo Scartezini

A Avenida Niévski é o principal endereço de São Petersburgo. Nos quarteirões ao seu redor se concentram prédios comerciais, escritórios, lojas chiques, teatros e apartamentos residenciais. Por ali as pessoas circulam dia e noite, seja por conta dos afazeres diários, seja por conta da vida social. Já era assim na primeira metade do século 19, quando Nikolai Gógol era um dos transeuntes que passavam pela Niévski.

Natural, portanto, que Gógol tenha se inspirado naquela rua e naquelas pessoas para Avenida Niévski, conto publicado em 1835, que agora recebe uma edição bacaninha da Cosac Naify, sob tradução de Rubem Figueiredo. 

Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) é considerado o introdutor do realismo na literatura russa. O que vale dizer que Gógol veio antes de Dostoiévski, de Tolstói, de Tchekhov, antes de todos esses baitas romancistas do século 19 que ergueram uma das maiores tradições literárias de que se tem notícia, esses gigantes que lançaram as bases estéticas e narrativas que até hoje norteiam a literatura mundial.

Verdade. Mas Nikolai Gógol, naquele então, idos de 1835, ainda era apenas um poeta frustrado que se arrastava pelas tarefas cotidianas de um reles funcionário público e batia as pernas pela Niévski enquanto se deixava levar por delírios de grandeza: um dia poderia escrever como seu ídolo Alexander Pushkin (1799-1837).

Quem se aventurar por esta Avenida Niévski na companhia do jovem Gógol poderá ouvir os ecos do romântico Pushkin - ecos de uma época em que as pessoas perdiam a vida em duelos em nome da honra - ecos de uma época em que as histórias tinham sempre um fundo moral. Mas o grande barato aqui é que já se pressente também um seco realismo social que ganharia contornos definitivos em obras como o romance Almas mortas (1842), a novela O capote (1842) e a peça Inspetor geral (1845).

Na Avenida Niévski encontraremos o jovem pintor Piskarióv e o tenente Pirigóv. Ambos os personagens, um de cada vez, se deixarão levar pelos ares cosmopolitas e glamorosos daquela rua e logo se meterão em sérias enrascadas. 

O primeiro deles, Piskarióv, hoje em dia parece soar como um alter ego de Gógol. Ele nos é apresentado como um jovem sonhador, que se imagina como grande artista, mas ainda é incapaz de se virar sozinho na vida adulta. Piskarióv previsivelmente se deixará encantar por uma bela garota que mostra não ser quem Piskarióv pensava que ela fosse. Por esse erro, Gógol não o poupará, não. 

Logo ali adiante, Pirigóv, que até parece ser um sujeito mais experiente e mais safo perto do outro, também cometerá um erro de avaliação em relação às intenções de uma dama que cruza seu caminho pela Niévski. E Gógol, nesse ponto, perderá o ar de fascínio e deslumbre que carrega pelos primeiros quarteirões de sua avenida para dar vez a uma amarga crueldade. Sem final feliz para Pirigóv.

A antiga capital 

Como pano de fundo para as quedas de Piskarióv & Pirigóv, temos Nikolai Gógol a pintar São Petersburgo como um pulsante centro urbano, que guarda tentações e arma suas armadilhas para os afoitos que não entenderem onde estão pisando.

Naquela época, vale ter esse contexto em mente durante a leitura, São Petersburgo estava por baixo na Rússia. A capital política tinha voltado a ser Moscou na década de 1810, por conta de sua localização mais central, mais segura diante de europeus militarmente inquietos (pense em Napoleão Bonaparte). Assim São Petersburgo, uma cidade planejada e construída por Pedro, o Grande às margens do Mar Báltico e do Rio Neva, parecia ter perdido sua razão de ser. E será justamente nessa cidade sórdida e decadente que mais tarde Dostoiévski situará as Notas do subterrâneo, 1864.

Esta edição de Avenida Niévski pela Cosac Naify reforça a dicotomia entre São Petersburgo (mais europeia e mais intelectual) e Moscou (mais caipira e mais burocrática) por conta de um segundo volume: Notas de Petersburgo de 1836.

Esse livrinho, como o título indica, traz textos de Nikolai Gógol sobre aquela época, aquele lugar. Gógol escreve sobre tudo um pouco, mandando seus pitacos por aí - desde o teatro russo de seu tempo até as estratificações sociais que se faziam sentir na Rússia pré-revolucionária - tornando mais evidente o jeitão de cronista que ele deixava entrever em certos momentos de Avenida Niévski, justo os mais divertidos, quando ele se detinha menos nas desventuras de seus protagonistas e elaborava mais considerações a respeito da paisagem urbana.

Nikolai Gógol flanando pela Avenida Niévski parece até o Machado de Assis passeando pelo centro do Rio de Janeiro.

Donde se pode tirar que Gógol, além de introduzir o realismo na literatura russa, carregava ainda um olhar de cronista, um tanto adiante de seu tempo, olhar que hoje parece tão contemporâneo a seus leitores, quase um par de séculos mais tarde. 

TRECHO DO LIVRO 

"A Avenida Niévski é a via de comunicação obrigatória de Petersburgo. Aqui, o morador de Petersburgo ou de Víborg, que há alguns anos não revê um amigo de Piéski ou do portão de Moscou, pode estar seguro de que o encontrará sem falta. Nenhum guia de ruas e nenhuma agência de informações fornece notícia tão confiáveis como a avenida Niévski. A todo-poderosa Avenida Niévski! A única alegria do pobre num passeio em Petersburgo! Como são limpas e varridas suas calçadas e, Deus, quantos pés deixaram nelas seus rastros. A bota suja e malfeita do soldado reformado sob cujo peso até o granito parece rachar, e o sapatinho em miniatura, leve como fumaça, da jovem senhorita que vira a cabecinha para as vitrines reluzentes das lojas assim como o girassol se vira para o sol, e o sabre tilintante do sargento-mor cheio de esperança, que o arrasta raspando com força no chão - todos descarregam sobre ela o poder da força ou o poder da fraqueza. Que veloz fantasmagoria se cumpre aqui no decurso de um só dia!"

Extraído do sítio O Imparcial

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.