12 de agosto de 2012

O PULO DO GATO E A LITERATURA - Jorge Valente

Charles Bukowski, Ernest Hemingway, Jean-Paul Sartre, Julio Cortazar, Trumam Capote, Stephen King, Aldous Huxley, Lygia Fagundes Telles. Sabe o que toda essa gente tinha em comum, além da literatura? Um gato. 

Muitos deles o levaram também para as páginas de seus livros.

(...) "Ronronando enquanto dorme, Fletch estica as patinhas pretas para tocar as minhas mãos, as garras encolhidas, um toque bem suave para assegurá-lo de que estou ali ao seu lado enquanto ele dorme."

Fletch é personagem de "O gato por dentro", obra de William S. Burroughs, ícone da geração beatnik, que balançou a cultura e a contracultura americana dos anos 50 e 60.

Ninguém chegou tão perto da vida errante dos gatos quanto esses poetas que adoravam viajar, nas várias acepções da palavra. De tão duros, dependiam do caroneiro para colocar gasolina no carro e rodar pelas estradas americanas.

Segundo o próprio Burroughs, os gatos foram domesticados pela primeira vez no Egito. "Os egípcios armazenavam grãos, que atraíam roedores, que atraíam gatos."

Certo é que, desde que os gatos começaram a acompanhar o homem, também passaram a circular pela literatura que ele produz. "Se quiser escrever, arranje um gato", disse o inglês Aldous Huxley, autor de "Admirável Mundo Novo". Quer dizer, por sua aura de mistério, os bigodudos rendem bons personagens nas letras. Mas também são bons companheiros de carne e osso para uma madrugada em claro.

Há razões para que um escritor escolha um gato no lugar, por exemplo, de um cão: seres independentes, encimesmados e silenciosos, não ficam tentando agradar o dono, pulando em cima dele ou disputando sua atenção com o texto.

Essa quietude, mesclada a miados esporádicos e um andar na beira dos telhados e parapeitos - com todos os riscos envolvidos - é um convite ao duro ofício de escrever. Não é esta também uma aventura rumo ao desconhecido? Um andar no fio da navalha? Quando começam a rabiscar, os escritores sabem para onde vão? Ou pulam de ideia em ideia, até encontrar o fio da meada? (ou da miada). 

Em outros tempos, a parceria entre homem e bicho terminou mal para as duas partes. Na Idade Média, gatos pretos, suspeitos de serem cúmplices das bruxas, acabaram na fogueira junto com elas. Até hoje, sofrem com a má fama. Em certas regiões do Brasil, são sacrificados em rituais de magia negra.

"O mestre e Margarida", de Mikhail Bulgákov, segue essa crença com uma veia satírica: na década de 30, uma comitiva comandada por Satanás desembarca em plena Rússia e provoca uma série de assassinatos e incêndios. Um gato preto "de proporções espantosas" faz parte da quadrilha. O livro é uma crítica feroz ao regime estalinista. Mas, como não podia fazer isso abertamente, Bulgákov criou um texto alegórico. E usou o gato - figura associada aos ritos satânicos - para compor sua metáfora.

Com todo esse physique du rôle, o malandro acabou pulando dos livros para os palcos e os cinemas. Transformou a peça "Cats" - baseada nos poemas de T.S.Eliot - num sucesso durante 18 anos na Broadway. E nunca se ouviu falar no musical Dogs.

Quando precisaram colocar uma tentação na vida do Batman, o homem-morcego, recrutaram a ronronante Michelle Pfeiffer. Afinal, quem resiste a uma lambida da mulher-gato? E, às vezes, ela nem precisa ser tão explícita.

Em "O gato de botas", clássico do francês Charles Perrault, conhecemos um gato espertalhão, que conquista o rei - com uma série de mentiras - e consegue transformar o dono pobre no rico "marquês de Carabá", garantindo, assim, um final feliz para ambos.

Vem da paulistana Lygia Fagundes Telles a defesa mais contundente do Felis Catus (A Disciplina do Amor):

"...Ele fixaria em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes, quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da sua liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo."

Outro simpatizante foi o mineiro Otto Lara Rezende, que compôs um dos mais belos textos escritos em português sobre a matéria felpuda: "Gato, gato, gato"(incluído na coletânea "Os cem melhores contos brasileiros"). Para Otto, o bicho caminha "molengamente".

Talvez o nosso querido imortal, que morreu na verdade em 1992, não tenha se dado conta das semelhanças que rondam os folclores de gatos e mineiros: chegam de mansinho, são desconfiados e estão sempre em cima do muro.

Os cachorros são os reis da simpatia, da coragem, da lealdade.

Mas obedecem a uma lógica previsível demais para a literatura de qualidade, que navega - ou afunda - com frequência em tons difusos, no lusco-fusco das ideias, na penumbra. Da mesma forma que os gatos.

Os cães são dicotômicos: mansos ou ferozes, de grande porte ou pequenos. Os gatos não. Vive neles o bichano sonolento e o tigre siberiano; a alma vagabunda dos beatniks, sempre com o pé na estrada, fazendo pequenos furtos - gatunos - e a fúria de Raskolnikov, o conturbado personagem de Doistoiévsky, disposta a destroçar o beija-flor.

E é essa mutação que seduz, talvez, tantos escritores. Do americano Edgar Alan Poe, autor do gótico "O Gato Preto", ao colombiano Gabriel García Márquez, que faz o personagem nonagenário de "Memórias de Minhas Putas Tristes" circular pela cidade com um angorá debaixo do braço. 

Alguém talvez lembre que Machado de Assis, o nosso maior escritor, inventou o cachorro Quincas Borba.

Mas o cão ocupou um lugar secundário na trama.

E vamos combinar: para o sisudo Bruxo do Cosme Velho, um gato preto é a única companhia não-humana plausível. 

Muitos, sem a inspiração de Machado, talvez olhem para os felinos, procurando neles a solução narrativa para os seus contos, novelas, romances e outros gatafunhos. Um flash-back, um epílogo, uma mudança no plot para fazer as histórias ganharem fôlego, como um Frajola de sete vidas. Mas o maroto, que dormita ao lado, se recusa a dar respostas fáceis. Segundo Lygia, é "indecifrável".

Acostumado aos faraós, carrega em seu caminho sinuoso o próprio enigma das pirâmides. Balança o rabo e, displicente, volta a se enroscar no tapete. Não é simplesmente o gesto de um animal. É a postura filosófica de uma espécie, que ensina o escritor a saltar no escuro - e agarrar a inspiração - como ela captura no ar o pássaro distraído.

Não é à toa que sobe com freqüência nas estantes, fuça livros, fareja, investiga os vãos e os desvãos, está à vontade nos sebos e bibliotecas. Assim como vaga na escuridão, atrás de bichos que saem de bueiros, ou caça à luz do dia nos jardins e beirais, o escritor tateia o chão e o céu, felinamente, atrás de uma palavra. De alguma forma - cúmplice do texto - o gato está ali; então, com um menear de cabeça, um roçar nas pernas, um ronronar, influencia a frase em construção. Gato, gato, gato. A literatura deve muito a esses molengas.

(*) Jorge Valente é jornalista e escritor.

Extraído do blog DoLadoDeLá

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