17 de setembro de 2012

PROFESSOR DE LITERATURA ÍTALO MORICONI COMENTA A OBRA DE MARIO QUINTANA, QUE COMEÇA A SER RELANÇADA - Carlos Herculano Lopes

O escritor Mario Quintana, querido pelos leitores, morreu aos 88 anos, em 1994, sem ter tido o devido reconhecimento da academia

A obra completa de Mario Quintana, que nunca teve muita atenção da academia mas foi consagrado pelos leitores de todo o país, começa a ser reeditada pela Editora Alfaguara. A curadoria é do crítico literário Ítalo Moriconi, professor de literatura brasileira e de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Para começar, acaba de sair uma caixa com três livros: Canções, de 1946, que inclui A rua dos cataventos, de 1940, e Sapato florido, de 1948, e dois outros, com os quais começou a ficar conhecido, Apontamentos de história sobrenatural, de 1976, e A vaca e o hipogrifo, de 1977, este de crônicas. Outros livros estão programados para sair em outubro/novembro, e o restante da obra será publicada entre 2013 e 2014.

Nascido em Alegrete, no interior do Rio Grande do Sul, em 1906, Mario Quintana começou a trabalhar aos 18 anos na Livraria Globo, de Porto Alegre, e depois se transferiu para o jornalismo, dedicando-se também à tradução. Trouxe para o português, entre outras, a obra de Marcel Proust. Laureado com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 1980, candidatou-se várias vezes – sem êxito – a uma vaga na instituição, e amargurou isso até sua morte, aos 88 anos, em 1994. Para Ítalo Moriconi, Quintana foi, sobretudo, um grande poeta lírico. Mas fez também prosa e aforismos, além de ter ficado famoso pelo bom humor e tiradas espirituosas. “Trata-se, realmente, de um dos mais populares poetas brasileiros. Toda hora a gente encontra alguém que conhece seus versos e poemas”, diz. 

Como foi a experiência de organizar a publicação da obra completa de Mario Quintana? Qual o ponto de partida para começar o trabalho?

Foi uma experiência maravilhosa, fiz releitura de toda a obra, sem quaisquer parti pris. Quintana sempre foi poeta de minha predileção, e fico feliz de estar trazendo-o de volta ao cenário editorial, reapresentando-o às mais jovens gerações de leitores de poesia. 

É possível situá-lo no universo da poesia brasileira?

Situo Quintana na família dos líricos essenciais, e assinalo nele a interpretação entre crônica e verso, característica forte da nossa poesia do século 20, que nele se manifesta de maneira própria. Certa lógica modernista se infiltra na crônica dele, enquanto o autor preserva o verso na sua pureza lírica.

Como essa pureza lírica pode ser sentida, e quais características principais que você aponta na obra dele?

Um humor delicado (o humor dele pode ser mais mordaz na prosa); um sentimentalismo muito contido mas muito intenso; a versatilidade no uso do verso livre modernista, assim como as incursões heterodoxas mas corretas no soneto; o espírito muito livre e autônomo; a atenção ao elemento infantil; a complexa incorporação da figura do anjo; a presença forte do arrebalde porto-alegrense como imagem universal, enfim, são muitos os temas e aspectos formais interessantes em Quintana. A poesia dele tem papel formativo muito eficaz, assim como as de um Gonçalves Dias, um Castro Alves lírico, um Bandeira, um Bilac no seu melhor. Para não falar de Cecília Meireles, que era a figura mais admirada por Quintana na poesia brasileira.

Como situá-lo no universo dessa poesia no século 20? Daria para compará-lo a nomes, por exemplo, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto?

Poeta de grande longevidade, um dos grandes intérpretes poéticos do tempo e do lugar brasileiros no século 20. Dos três poetas citados, ele compete com Bandeira, embora Bandeira tenha talvez mais expertise técnica. De qualquer maneira, Bandeira chegou antes de Quintana e, certamente, o influenciou. Quando ele começou a escrever sonetos nos anos 1930, a linguagem modernista da poética coloquial e cotidiana já está não só consolidada, como em alguns setores começa a flertar com o soneto e com a volta a formas convencionais (nisso Mário de Andrade foi dos primeiros). Com relação à expertise técnica, cabe dizer que a persona de poeta de Quintana se assume integralmente insubordinada e indisciplinada. Se Oswald de Andrade propugnou o ‘olhar com olhos livres’, Quintana propõe o ‘poetar com o olhar vagabundo’, como opção de persona poética. No entanto, se lemos suas crônicas em A vaca e o hipogrifo e seus textos curtos em Sapato florido, vemos que ele tinha excelente cultura literária cosmopolita. E mais: quando analisamos seu currículo como tradutor profissional, vemos que ele era, sim, capaz de grande disciplina intelectual e que detinha o controle técnico da escrita literária tanto quanto qualquer outro poeta do nosso século 20. 

Alguns críticos costumam dizer que Quintana, ao longo da sua obra, chegou a produzir coisas dispensáveis. O que você acha disso?

Ao contrário do que muitos dizem, Quintana cresceu como poeta quanto mais velho se tornava, embora seus primeiros livros, anteriores aos anos 1970, sejam também preciosidades inestimáveis da nossa lírica essencial. Não acho nada dispensável na obra publicada por ele, embora essa seja uma questão subjetiva. Tenho uma ideologia crítica pela qual tudo que um poeta publica é interessante, sem que, por isso, fique cego para as diferenças de força estética entre um texto e outro. Mas o texto ruim ou dispensável de um grande poeta sempre tem algum interesse crítico também. Porém, Quintana controlava muito bem aquilo que saía de sua gaveta para a página do livro. Ele de intuitivo não tinha nada. O intuitivo nele deve ser visto como parte de sua persona de poeta, mas jamais como atributo de sua persona autoral. Por ser extremamente popular, existem muitas antologias e seletas de Quintana. Eu mesmo estou preparando uma que fará parte da presente edição da Alfaguara.

A crítica acadêmica nunca deu muita bola para a obra de Mario Quintana. E pelo público, ele foi consagrado?

Quintana não faz uma poesia erudita, o que o tornaria, em princípio, um poeta menos favorecido pela atenção universitária. No entanto, sua fortuna crítica é bastante vasta. Nos últimos anos, essa fortuna diminuiu um pouco, mas acredito que ainda há trabalho interessante a fazer com ele em termos de teses de mestrado ou doutorado, como, por exemplo, comparar sua obra à de outros líricos essenciais (Bandeira ou Cecília e muitos outros nossos contemporâneos), verificar a relação entre sua obra e a dicção marginal dos anos 1970 e, sobretudo, tentar cavucar um pouco mais as relações intertextuais de sua poesia, que são por Quintana muito bem disfarçadas. Tem também os temas da nostalgia, da melancolia, da postura diante da morte, que vai mudando na obra de Quintana à medida que ele próprio envelhece e se aproxima do grande abraço. Quanto à popularidade de Quintana, ela é imensa. Trata-se, realmente, de um dos mais populares poetas brasileiros. Toda hora você encontra gente que conhece seus versos de cor.

Palavra de Quintana

O poema

“Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e o mistério 
da vida...”

Comunhão

“Os verdadeiros poetas não leem os outros poetas. Os verdadeiros poetas leem os pequenos anúncios dos jornais.”

Boca da noite

“O grilo canta escondido... e ninguém sabe de onde vem seu canto... nem de onde vem essa tristeza imensa daquele último lampião da rua...”

Mudança de temperatura

“Nos fios telegráficos pousaram uma, duas, três, quatro andorinhas. Olham de um lado e outro... Irão partir? Sobre as cercas rasas do arrebalde, os girassóis espiam como girafas.”

Intercâmbio

“Vovô tem um rosto de cobre – surdo, velho, azinhavrado – um riso que sai, custoso, aos vinténs. Mas Lili, sempre generosa, lhe dá o troco em pratinhas novas.”

A princesa

“Quando lhe perguntaram o nome, Lili espantou-se muito: – Ué! Mas todo mundo sabe...”

Extraído do sítio UAI

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.