21 de outubro de 2012

MANUEL ANTONIO PINA (1943-2012): "CONDENADO" À POESIA - Maria Leonor Nunes

Na morte de Manuel António Pina, um nome maior da literatura portuguesa, recordamos a entrevista que Maria Leonor Nunes lhe fez, em 18 de maio de 2011.


Pode uma poesia abarcar-se em 80 páginas, dizer-se quase quatro décadas de versos em pouco mais de 40 de poemas? Poesia, saudade da prosa, uma antologia pessoal de Manuel António Pina, uma edição Assírio &Alvim, em breve nas livrarias, traça uma espécie de 'biografia poética', ainda que Pina, considere que se trata apenas de uma "leitura" da sua obra.

São exatamente 44 poemas que Manuel António Pina escolheu de quase todos os seus livros, com incidência nos mais recentes, por exemplo, Cuidados intensivos e Os livros. Uma escolha feita, segundo adianta, sobretudo por "afinidades", mais por uma "subjetividade" do que por critérios objetivos.

E, no entanto, a sua leitura ilumina os lugares da sua poética, a relação com as palavras e com um modo de dizer da morte, da vida e do mundo.

Manuel António Pina, que desde 2003 não publica um volume inédito de poesia, tem entretanto quase pronto um novo livro a sair provavelmente no final do ano. Chamarse-á Como desenhar uma casa. É o que adianta ao JL, numa entrevista por mail, feita noite dentro, ainda na ressaca da surpresa do anúncio do Prémio Camões. Respostas quase à medida, talvez um pouco menos do que os carateres limite. "Cortar é fácil", diz ele, acrescentar é que lhe parece sempre "palha". Prática do essencial que não é apenas da sua poesia, mas também do jornalismo, mais de 30 anos de estagiário e crítico de cinema a chefe de redação e da sua arte de cronista. Custa-lhe, diz ele, até juntar 50 carateres para completar os 1400 da sua crónica diária no Jornal de Notícias. E conta: a "palha" só lhe serviu uma vez, nos exames do liceu, para encher o olho dos professores. Resultou, porque ele, que era aluno de 12, exceção feita à Literatura, acabou por ser até premiado por ter a melhor prova de Filosofia. O valor monetário era decepcionante, uns quatro escudos e não mais, mas em compensação disseram-lhe que poderia usar durante um ano o título do prémio como um régio cognome. Agora por certo, muitas vezes se irá acrescentar Prémio Camões, ao seu nome.

JL: Retomemos o seu verso: "Porquê a poesia e não outra coisa qualquer?"

Manuel António Pina: Hoje estou convencido de que, retirando a carga dramática à palavra, se trata antes de uma "condenação" (poderia dizer "inclinação", mas a coisa é um pouco mais imperativa do que isso) do que de uma opção, algo que nos escolhe mais do que o escolhemos nós. Desde que me conheço que escrevo versos. Minha mãe (as mães fazem coisas destas) guardou durante muito tempo versos que escrevi aos sete ou oito anos (quando, aos sete, entrei para a escola primária já sabia ler e escrever).

Que versos escrevia?

Primeiro, dísticos muito simples, depois versos mais elaborados, quadras de rima cruzada ou interpolada, falando de histórias de que gostava (há, por exemplo, um que conta o milagre das rosas) ou em resposta a questões que era costume os adultos porem às crianças, como: "O que queres ser quando fores grande?" (naquele tempo, a crer nesses versos infantis, eu hesitava entre ser detetive, padre ou bombeiro).

Pergunto-me porque é que me deu para escrever em verso e não em prosa, e estou convencido de que foi porque, próxima da música, a poesia é a forma elementar e primária de expressão pela palavra. Apesar de, como Monsieur Jourdain a certa altura descobre, falarmos em prosa, a prosa escrita vem depois da poesia e exige um muito maior domínio da palavra (só escrevi os meus primeiros contos aos 14 ou 15 anos).

Poesia, saudade da prosa, a antologia que vai publicar, é uma 'memória descritiva 'da sua arte poética?

Acho que não. Tomei todos os poemas que publiquei em livro como se se tratasse do acervo de um novo livro, despi-os de quaisquer referências cronológicas ou outras (os próprios livros de origem dos poemas apenas são referidos no índice), escolhi os bastantes para ocuparem, páginas de anterrosto e de rosto, bem como de índice, incluídas, cinco cadernos (80 páginas) e organizei-os subjetivamente.

Como?

Mais por afinidades pressentidas do que por qualquer critério lógico, temático ou formal. O resultado é uma concreta leitura pessoal que, num dado momento e em dadas circunstâncias, fiz da minha própria poesia. Noutro momento e noutras circunstâncias (até de tempo) teria talvez feito outra, decerto não inteiramente coincidente com esta.

O que agrega estes poemas é a reflexão sobre a sua poesia? Um olhar sobre os lugares, as palavras, e a relação com o real, com a memória?

Como disse antes, os poemas foram agregados apenas pela minha subjetividade de momento, e esta até a mim, às vezes, me parece agora um pouco confusa. Com uma única exceção por assim dizer "objetiva", resultado de uma preocupação gráfica: que os poemas mais longos, com duas páginas, começassem em página par e acabassem em página ímpar, de modo a aparecerem integralmente aos olhos do leitor, e evitando a perturbação que as mudanças de página sempre provocam na leitura, maior ainda quando a primeira página do poema eventualmente termine no fim de uma estrofe ou num ponto final e só quando vira a página se descobre que o poema, afinal, continua.

O MEDO E A MORTE

A morte percorre estes poemas. Pela inquietação, pela consciência, por ser o "lado" de onde se vê a vida?

A morte e o amor (e, vá lá, o tempo) são temas de toda a poesia e, se calhar, de toda a literatura e toda a arte. Bataille, falando da presença da morte e do sexo em muito do humor que os homens fazem, relaciona isso com o medo. "Ris-te porque tens medo", diz ele, já não sei se em "Madame Edwarda" se em "Le petit". O amor está ligado, através do sexo, à origem do ser; a morte ao seu desaparecimento. Perante os abismos do antes e do depois, é natural que o homem tenha medo. E que, por isso, ria. Ou se interrogue, procurando respostas. Julgo que é o medo que explica a presença obsessiva da morte e do amor na literatura e na arte. E não só, também na filosofia e na religião.

Em que sentido?

As questões filosóficas continuam a ser aquelas que os nossos filhos nos põem mal tomam consciência de si e do mundo: "Onde estava eu antes de nascer?", "Para onde se vai quando se morre?", isto é: "Donde vimos?, para onde vamos?, porquê?" E a generalidade das religiões contém uma cosmogonia e uma resposta particular à questão do destino do homem. Como poderia a minha poesia não falar da morte?

Como escolheu os poemas? Em função de uma 'narrativa'?

Não criei qualquer 'narrativa' (se assim fosse, teria separado os poemas por partes, eventualmente intitulando-as, propondo assim uma espécie de roteiro de leitura). Espero que, se as coisas tiverem corrido bem, os próprios poemas possam organizar-se como 'narrativa' e oferecer-se como tal a cada leitura.

Diz-se que ninguém é bom juiz em causa própria. E antologiador?

Com efeito, fiz uma escolha (o número de páginas começou logo por ser uma escolha prévia; eu pretendia um número menor delas, foi o Manuel Rosa quem insistiu em "80 pelo menos"). E uma escolha implica necessariamente um julgamento. Mas não (no meu caso não, ou apenas limitadamente) em causa própria, pois já sinto muita dificuldade em reconhecer-me nos poemas dos meus primeiros livros, antes de Farewell happy fields. Daí talvez a predominância nesta antologia de poemas dos meus livros mais recentes. Numa outra antologia (por isso esta se subintitula, não "antologia pessoal", mas "uma antologia pessoal"), presidida por outro tipo de subjetividade ou, até, quem sabe?, outros tipos de objetividade (por exemplo, cronológica ou "representativa") poderia ter acontecido o contrário. Quanto a ser, ou não, "bom" juiz em causa própria, ocorre-me um dito de Cyrano de Bergerac quando um dia, réu num processo qualquer, se propôs defender-se a si próprio e o juiz o alertou do velho brocardo jurídico que diz que "advogado que se defende a si próprio tem um burro como cliente". Terá respondido Cyrano: "Pois sim, mas prefiro ter um burro como cliente do que um burro como advogado". Talvez eu tenha preferido ter um mau juiz em causa própria do que um bom juiz mas em causa alheia

Como releu toda a sua obra para esta antologia? Como reconheceu os seus poemas? Estranhou alguns, rejeitou outros? Mudou alguns?

Acho que apenas eliminei (e/ou acrescentei, já não me recordo) uma ou outra vírgula. E tenho a vaga ideia de ter igualmente eliminado um ou dois pontos de exclamação.

A CASA E A MELANCOLIA

Desde Os Livros que não publica um volume inédito de poesia.

Tenho um livro praticamente pronto, que julgo que se intitulará Como se desenha uma casa e que inclui poemas inéditos e outros publicados avulsamente em jornais ou revistas.

Se tudo correr bem entregá-lo-ei à Assírio & Alvim lá para o fim do ano.(Mas já no ano passado tinha garantido ao Manuel Rosa que o entregaria no fim desse ano...)

Tem já muitos poemas escritos?

Acho que 90% estão escritos, e 90% desses 90% tenho-os por acabados, até onde uma coisa destas pode ser dita. Como o título do livro sugere, todos esses poemas se organizam, mais claramente ou mais obscuramente, em torno da melancólica temática da "casa", com todas as suas possibilidades simbólicas. Se as coisas permanecerem como estão, terá duas partes, uma intitulada "Ruínas" (título a partir de um verso do poema de abertura: "Uma casa é as ruínas de uma casa") e outra, com avulsos, "Amigos e outras moradas".

E outros livros? Irá voltar à ficção? E à literatura infantil?

De momento não tenho qualquer projeto de ficção. Já no domínio daquilo que costuma designar-se por literatura infantil tenho por aí um ou dois contos inéditos.

E como se sente um poeta distinguido com o Prémio Camões?

Só posso falar por mim, e eu sinto-me um pouco constrangido. Apesar de tudo, cada vez menos conforme o tempo vai passando. Se a coisa continuar assim, acho que acabarei por habituar-me à ideia, mesmo não sabendo bem o que faço eu no meio de nomes como os dos outros premiados.

Extraído do sítio Visão.pt

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