17 de outubro de 2012

SEIS CLÁSSICOS QUE PODIAM NÃO TER SOBREVIVIDO - José Cabrita Saraiva

Max Brod e Franz Kafka
Ficou nos anais da história da literatura o testamento que Franz Kafka, já doente, confiou ao seu amigo Max Brod. Nele, o escritor dava instruções para, após a sua morte, serem destruídos pelo fogo todos os seus escritos.

Como é sabido, Brod não lhe fez a vontade. Considerava Kafka o maior poeta do seu tempo e achava um desperdício queimar a sua obra genial. E é a essa falta de respeito para com a vontade de um morto que os leitores de hoje devem agradecer o prazer da leitura de clássicos como A Metamorfose ou O Processo.

O estranho pedido de Kafka – quase se diria kafkiano – pode parecer-nos muito moderno, mas a verdade é que há mais de dois mil anos um poeta romano fez algo muito idêntico – e com os mesmos resultados. Virgílio acreditava que, antes de tornar pública uma obra, ela devia passar vários anos a amadurecer na gaveta, como um bom vinho. A Eneida ainda não tinha cumprido esse estágio quando, em Setembro de 19 a.C., o seu autor percebeu que o fim da vida se aproximava. Além disso, não se sentia satisfeito com a obra. No leito da morte, pediu que a destruíssem.

A sua última vontade acabou por não ser cumprida: o imperador Augusto, protector do poeta, impediu a sua destruição e A Eneida foi publicada. Teve tanto sucesso que, ao invés de desaparecer, as edições se multiplicaram.

Voltemos ao século XX. Para preservar a sua obra sobre o sinistro sistema prisional da União Soviética (O Arquipélago de Gulag), Alexander Soljenítsin escondeu o manuscrito original em casa de uma amiga na Estónia, para estar a salvo do KGB. Os serviços secretos apanhariam, no entanto, uma cópia. O seu paradeiro foi revelado durante um interrogatório à mulher a quem Soljenítsin havia pedido para dactilografar o livro. Dias depois de ter sido libertada, o sentimento de culpa falou mais alto, e a dactilógrafa enforcou-se. Não sabia que aquele exemplar era apenas um dos três que existiam – e o livro acabou por ser publicado em 1974.

Uma história igualmente dramática teve O Diário de Anne Frank, que, ao contrário da sua jovem autora, sobreviveu quase miraculosamente. Foi Miep Giese, que ajudara e abastecera os Frank no esconderijo, quem recolheu, arriscando a vida, os cadernos onde Anne registara o seu dia-a-dia – alguns deles fora ela própria que os oferecera à cativa. Por felicidade, Miep Giese nunca espreitou o que Anne Frank havia escrito. «Se o tivesse lido seria obrigada a queimá-lo, porque seria demasiado perigoso para as pessoas acerca de quem Anne escrevera».

Vou passar ao último caso, o meu favorito. Em 1923, ano em que Hitler participou num golpe falhado que o levaria à prisão (conhecido como putsch da cervejaria), dois historiadores da arte publicaram um ensaio sobre uma gravura de Dürer. O texto esgotou, ao que pensaram desenvolvê-lo em livro, com a ajuda de um especialista em filosofia medieval. O livro estava quase pronto quando o bombardeamento de Hamburgo destruiu o manuscrito original. No exílio, Panofsky, Saxl e Klibansky tiveram de o reescrever a partir do zero. Saturno e a Melancolia só saiu em 1964, 25 anos depois de ter estado quase pronto. Um livro escrito a três mãos que não sobreviveu à guerra mas que, em compensação, conseguiu ressuscitar das cinzas.

Extraído do sítio Sol.pt

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