17 de dezembro de 2012

BEETHOVEN, O SURDO IMORTAL QUE ESCREVIA PARA O FUTURO - Milton Ribeiro

Sua surdez era trágica do ponto de vista social. No plano artístico, apenas impediu uma carreira como pianista.

Ludwig van Beethoven (16 de dezembro de 1770 – 26 de março de 1827) foi um compositor cuja existência foi tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxalmente. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade. Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha certeza da imortalidade de sua obra. Com toda a razão. Ele tinha a perfeita noção de que criava um conjunto espetacular de obras musicais, que alicerçava uma Obra, noção que inexistia ao tempo de Bach, o qual tratava suas composições como se fossem sapatos a serem entregues ao consumidor. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além prejudicar de forma fatal sua carreira de grande pianista, mas nunca foi encarada por ele como um obstáculo no plano da criação.

Aos 31 anos, Beethoven já ouvia muito pouco, mas seguiu compondo até a morte, aos 56 anos.

Com isso, não estamos dizendo que ele não tenha sofrido muito com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto de ter pensado em suicidar-se. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa, mas, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.

A primeira fase de Beethoven foi muito influenciada por Mozart e por seus professores Haydn e Albrechtsberger. Porém, em 1802, ele já havia composto três de seus cinco Concertos para Piano, mais de vinte sonatas, dentre elas a Patética, a Ao Luar e A Tempestade, além das duas primeiras sinfonias e do esplêndido ciclo de Quartetos de Cordas do opus 18.

Beethoven aos 13 anos: desde pequeno, muitas brigas com os professores e um estranho interesse em literatura

Beethoven foi um aluno difícil. Com consciência de seu gênio, buscou Mozart como seu professor, mas este não lhe deu muita bola. Então, aos 22 anos, teve aulas com o mais benevolente Haydn, que o achava muito ignorante. Haydn ensinou-lhe muito, mas o considerava um chato e chamava-o de Sua Majestade, o Grão Mogol. Teve aulas também com outros dois grandes nomes da época: Salieri e Albrechtsberger, que entrou para história com algumas frases que fariam a alegria dos biógrafos: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Beethoven respeitava muito Haydn e Mozart, mas nunca Albrechtsberger… Ou seja, o amor era recíproco.

Hoje, quase 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovada a arrogância do rapaz, então procuremos ver sua postura por um lado muito mais indulgente: era orgulho, consciência do próprio valor e, se ouvirmos a música do pobre Albrechtsberger, clara superioridade.

Beethoven, nascido em uma família inculta, desde cedo tinha uma noção muito curiosa do que lhe faltava: conhecer literatura. Com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que planejava para si: ser o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons.

Só Haydn aguentava o rapaz

As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, ele já anunciava os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes: os temas curtos e afirmativos, os súbitos silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era, na verdade, um classicismo próprio, de Beethoven.

Tudo parecia levá-lo ao épico e a Sinfonia Nº 3, Eroica, abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava os ideais da Revolução Francesa e Napoleão, para ele, era sua personificação… Porém, quando Napoleão autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven revoltou-se. Foi à mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão tão violentamente que ficou um buraco no papel. E que música havia ali! O ciclo épico seguiu com obras verdadeiramente espantosas que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano. A Sinfonia Nº 5, dita Do Destino, a Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, o Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro, eram músicas altamente belicosas, intensas, triunfantes e românticas.


A Eroica era a Sinfonia Napoleão. Porém, ao autoproclamar-se Imperador…


Beethoven mudou o nome para Eroica. E não bastou apagar o nome de Napoleão no manuscrito, teve que fazer um furo no papel.

Enquanto isso, a vida amorosa de Beethoven ia de mal a pior. Dono de uma personalidade apaixonada, sofria decepções em série. Um dos mais famosos casos foi o com Bettina Brentano, que fez uma extensa descrição do mestre em suas cartas. Descreveu-o como “pequeno, moreno, marcado pela varicela, o que se chama de feio”. Porém, “com uma fronte nobremente modelada, parecendo ter trinta anos” – tinha quarenta – “, mas vestindo andrajos com ar magnífico e imponente…” Sim, nos filmes ele é um pouco melhor.

Sem meias palavras: “O ar da corte agrada muito a Goethe. Mais do que deveria agradar a um poeta”.

Bettina apresentou-o a Goethe. Outra decepção. Goethe disse que talvez Beethoven tivesse razão para achar o mundo um lugar detestável, mas que nada fazia para torná-lo mais agradável para si e para os outros. Em resposta, Beethoven declarou-se escandalizado com a atitude obsequiosa de Goethe diante dos poderosos. “O ar da corte agrada muito a Goethe. Mais do que deveria agradar a um poeta”. Goethe jamais o perdoou.

Entre 1813 e 17, Beethoven passou por uma crise. Compôs a pior das músicas em A Vitória de Wellington. “É uma estupidez”, disse, mas a Alemanha saudou o triunfalismo da obra. Era o músico nacional. A vaidade jogou-o em outras empreitadas mal sucedidas. Eram cantatas e músicas de circunstância que alcançavam o aplauso de soberanos e príncipes e aclamações nas ruas.

A sorte foi ele ter conhecido a Condessa Maria Erdödy, que preferia música de verdade. A ela foram dedicadas as duas esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102. A postura dos amigos era de romantismo total: “Nós, seres limitados de espírito ilimitado, nascemos para o sofrimento e para a alegria. Sendo que os mais destacados, como você, apropriam-se da alegria através do sofrimento”, escreveu a Condessa em carta dirigida à Beethoven. Enquanto isso, desesperava-o a conquista de Viena por parte de Rossini.

Após uma doença onde pensou que morreria, Beethoven reencontrou-se definitivamente em 1818. Neste ano, começou a criar não suas obras mais populares – apesar da época conter a ultra e justamente popular Sinfonia Nº 9 – , mas aquelas que, de tão perfeitas, serviram de base e influência para um alto número de compositores que vieram depois. A irrepetível sequência de músicas perfeitas e revolucionárias começou com a Sonata para Piano, Op. 106, Hammerklavier. Teve que prestar explicações a seus contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais um rosário de deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Escrevo para o futuro”. E tinha razão.

A certeza de que estava à frente de seu tempo e de que escrevia para o futuro

As sonatas seguintes, Op. 109, 110 e 111, são inacreditáveis, assim como as Variações sobre um tema de Diabelli, onde um tema bobinho é desenvolvido e transformado até atingir alturas prodigiosas. A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de todos os tempos: a aula do Prof. Kretschmar em Doutor Fausto, de Thomas Mann. Porém, as obras que os melômanos até hoje reviram os olhos ao falarem delas são os últimos quartetos. Em meio à doenças e reclamações contra Rossini e a italianização do mundo, vieram à tona seus cinco últimos quartetos de cordas, que serviram de pedra fundamental para boa parte da música do futuro. Quando soube que tinham sido pessimamente acolhidos, repetiu, sempre com razão: “Não é para vós, mas para as gerações futuras”.

Um retrato mais próximo do que escreveu Bettina: o feio

Pois o futuro lhe daria toda uma história do beethovenismo. No início do século XX, Romain Rolland acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia ter errado mais. Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente influenciados por ele. Além disso, tornou-se o mais popular dos compositores eruditos, o elo perfeito para a admiração de melômanos e daqueles que raramente ouvem a música erudita. Ludwig van tinha a admiração de Alex DeLarge, personagem de A Laranja Mecânica. É interpretado por alunos de piano nas facilidades da Sonata ao Luar. Também tem a admiração das pessoas que invadem praças para ouvir o final da Nona Sinfonia – “tenho a impressão de ter escrito só algumas poucas notas”. E conta com a estupefação dos entendidos que ainda analisam longamente suas últimas sonatas e quartetos.

E agora digam que ele não escrevia para o futuro.

A chamada “Sonata ao Luar”, com Nelson Freire:


Extraído do sítio Sul21

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