8 de março de 2013

HONORÉ DE BALZAC E A TEORIA DA ARTE QUE NASCE DA LITERATURA - Iracema Sales

Sob encomenda da revista francesa L´Artiste, Honoré de Balzac (1799 - 1850) escreveu "A obra-prima desconhecida" (1831). Tratava-se de um conto fantástico, narrando a história do pintor Frenhofer, que toma a arte como sua amada, corporificando-a, simbolicamente, numa mulher. À época, o escritor não deveria imaginasse as implicações que sua narrativa teria para os estudos da arte e da cultura até hoje. 

Honoré de Balzac: história de contornos fantásticos serve de ponto de partida para ensaio filosófico "A Pintura Encarnada", do crítico francês Georges Didi-Huberman. Em pauta, a relação do artista com seu ofício e com sua criação

Embora a inusitada história seja ambientada entre os anos 1612-1613, período pós-barroco, o drama vivido pelo velho pintor Frenhofer, fruto da imaginação de Balzac, e dois jovens pintores franceses François Porbus e Nicolas Poussin constitui objeto de estudo a pesquisadores contemporâneos. O filósofo, historiador e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman, professor da École de Hautes Études em Sciences Sociales, Paris, resolveu dissecar, à luz da psicanálise, da semiótica e da fenomenologia, a narrativa, no livro "A pintura encarnada", seguido de "A obra-prima desconhecida, de Honoré de Balzac".

Dividida em duas partes, a obra analisa a ideia central da obra de Balzac, um estudo sobre as relações entre arte e vida. Ou seja, como essa relação artista-vida-idealização da obra de arte acontece, sem perder de vista a análise de Balzac, que mostra até onde pode ir essa busca pela perfeição. Ou ainda, o que um artista é capaz de fazer ou renunciar em nome da arte. Pode chegar ao ponto da obsessão, assim como aconteceu com Frenhofer, que suicida-se ao perceber que a mulher idealizada, segundo sua imaginação, desenhada naquela que seria a sua obra-prima desconhecida, não era "nada, nada", como puderam comprovar os pintores Poussin e Porbus.

Teoria

"A pintura encarnada" busca um significado para a teoria de arte, sendo escrita por Balzac em forma de literatura. Aliás, vale lembrar que, naquela época, literatura e pintura constituíam um mesmo discurso. E Balzac com a mesmo talento que demonstrou nas Letras, escreve uma bela página que muito contribui para a história da arte.

Ao leitor, é impossível não fazer relação entre a obra em estudo e o texto "A dúvida de Cézzane", por Maurice Merleau-Ponty, falando sobre as inquietações do pintor francês diante de sua vocação, digo, de sua arte.

Angústia

Uma demonstração da angústia de Frenhofer, quase no fim de sua existência, foi a constatação de que sua obra-prima não existia. Então, dispara: "Sou, pois, um imbecil, um louco! Não tenho, pois, nem talento, nem capacidade, não sou senão um homem rico, que andando, não faz senão andar", disse, contemplando sua tela através das lágrimas. Na mesma noite, queima suas telas e morre.

Didi-Huberman, aproveita as deixas pontuadas por Balzac, no seu texto, denso e vivo, tal qual o desejo do velho Frenhofer em completar sua obra-prima, bem como as simbologias, representadas pelas cores e pela carga emocional que pontuam o romance do escritor francês. É dessa maneira que constrói a sua narrativa não menos sinuosa e densa que a de Balzac. A primeira parte de "A pintura encarnada" é dedicada justamente às análises das criações balzaquianas, vindo, em seguida, o texto original de "A obra-prima desconhecida", explicando que a tradução foi realizada a partir da edição, revista e aumentada por Balzac, de 1837. A tradução é de Leila de Aguiar Costa, pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

Percorrer os campos simbólicos, análise de imagens e criação de textos marcado por metáforas é uma constante na obra de Georges Didi-Huberman, aspectos percebidos em outras obras publicadas no Brasil, como "O que vemos, o que nos olha" (Eiditora 34) e "Sobrevivência dos vaga-lumes" (Editora da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG). Dividido em seis capítulos, a obra do crítico de arte francês tenta costurar alguns "pensamentos avulsos" sobre a pintura, usando a mesma linha com a qual Balzac teceu "A obra-prima desconhecida". Isto é, a narrativa de Balzac serve como roteiro para a rica análise do filósofo, cujo desenrolar segue uma linha de raciocínio que parece formar um mosaico, dada a precisão. Tudo se encaixa numa perfeita harmonia, o que não deixa de lembrar o tecido construído por Balzac, ao trabalhar com literatura e história da arte num mesmo texto, mesclando imaginação e realidade.

No prefácio à edição brasileira, o tradutor da obra, Osvaldo Fontes Filho, professor do Departamento de História da Arte, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) fala sobre a figura feminina incorporada na "mulher-feita-pintura", criação de Frenhofer. Ele ressentia-se da falta de "vivacidade" da amada, algo que só existia na sua imaginação. Daí poder ser perfeitamente a pintura ou a arte a corporificação imaginária dessa mulher-obra, mas que como o mármore, também não tinha vida.

Para suprir essa falta de vida de sua "amada", o mestre convida os jovens pintores Poussin e Porbus a contemplarem a sua criação. No entanto, só percebem o espectro de uma figura em meio a um caos de pigmentos, com exceção de um pé, que surge no fim do quadro. Trata-se do objeto fetiche que abarca todo o corpo da mulher amada, tema analisado pelo filósofo francês, que recorre aos estudos freudianos. "A pintura encarnada" movimenta amplos campos do saber, terrenos familiares a Didi-Huberman, que numa escrita cheia de vida, constrói "A palavra encarnada", alusão que faz à encarnação, relativo à carne e à cor vermelha. São ingredientes fundamentais à obra de Frenhofer, cujo texto é uma encarnação da literatura na pintura e vice-versa.

LIVRO: A pintura encarnada - Georges Didi-Huberman - Editora Escuta - 2012, 188 páginas - R$ 52

Extraído do sítio Diário do Nordeste

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