25 de março de 2013

UMA CLARICE ACESSÍVEL - Clarice Cardoso

Para pesquisadora Olga de Sá, popularidade na internet pode ajudar a trazer jovem leitor para perto da autora de A Hora da Estrela. Foto: Claudia Andujar

Sobre o amor ou a amizade. Sobre perdas, animais ou o luto. Todos os dias, em páginas na internet e em redes sociais como o Facebook, incontáveis frases sobre esses e diversos outros temas são compartilhadas e atribuídas a Clarice Lispector. Muitas fora de contexto, outras apócrifas, é verdade, mas que ainda assim podem se converter numa oportunidade para atrair para sua obra leitores abertos a isso, afirma Olga de Sá, reconhecida pesquisadora da obra da autora, diretora-geral das Faculdades Integradas Teresa D’Ávila e do Instituto Santa Teresa, de Lorena, São Paulo, e professora-assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

“Só não podemos ficar nisso. É preciso levar o leitor ao texto, porque é lá que vai encontrar a verdadeira Clarice, a escritora que mudou a literatura brasileira de alguma forma, assim como de outra forma Guimarães Rosa também mudou. O importante é não ficar na redução, mas levar ao texto completo”, afirma.

Na esteira da fama virtual, a Editora Rocco vem nos últimos anos republicando e lançando volumes temáticos, caso de De Bichos e Pessoas – Crônicas para jovens, De Escrita e Vida – Crônicas para jovens e De Amor e Amizade – Crônicas para jovens. Presente há anos em listas de leituras obrigatórias em vestibulares, Clarice Lispector torna-se, assim, ainda mais presente na vida do jovem leitor.

“Os livros de Clarice abrem um universo de diálogo com os jovens e com qualquer pessoa, que é muito amplo e significativo. O professor que conseguir tocar essa tecla, de ser capaz de fazer o texto falar, terá resultados muito gratificantes.”

Carta na Escola: Clarice tem ganhado muita fama na internet, em redes sociais, com trechos retirados de seus textos e frases que, muitas vezes, nem mesmo são dela. Esses são leitores de Clarice em potencial?

Olga de Sá: Alguns jovens gostam de frases de efeito retiradas do contexto. Essas pessoas são movidas por esse tipo de leitura, mas, certamente, quando você tira uma frase do contexto, há de ter cuidado, porque, na verdade, o contexto dá sentido à frase. Eu tenho lido algumas coisas dessas e acho que, às vezes, até se altera o sentido do que ela estava dizendo. Existem sim leitores que gostam disso, contudo, é preciso cuidado, porque, na verdade, quando você lê uma obra, pode levantar muitas significações, o que é próprio da obra. Porém, há significações coerentes e incoerentes. Não é tudo que se pode ler, tem de ter certa coerência de leitura e isso, às vezes, escapa a esse tipo de leitor que faz a leitura subjetiva, que lhe agrada.

CE: Isso de alguma forma reduz o peso da obra da autora?

OS: Ela se defende. Não adianta fazer essa redução, porque você volta ao texto e vê que ele não condiz com o que foi dito. Na verdade, autores menores podem ser mais passíveis de certa redução, mas Clarice não se deixa reduzir.

CE: Um educador, de olho nessa tendência, pode aproveitar essa fama virtual para levar o jovem para a obra?

OS: Tudo é válido, desde que você vá até a obra. Eu mesma tenho vários cartões que mando com frases de Clarice, elas são lindas. Por exemplo: “Todas as manhãs, quando me levanto, vou tirar a poeira da palavra amor”. Então você pode, a partir daí, levar o leitor para a obra de Clarice. O que não se pode é ficar nisso. É preciso levar o leitor à leitura do texto, porque é lá que ele vai encontrar a verdadeira Clarice, vai encontrar aquela escritora que mudou a literatura brasileira de alguma forma, assim como de outra forma Guimarães Rosa também mudou. O importante é não ficar na redução, mas levar ao texto completo.

CE: Que características na obra de Clarice podem ser bem trabalhadas com esse jovem leitor?

OS: Quando o leitor já tem certo conhecimento de literatura, pode-se ir pelas figuras, como os paradoxos, as antíteses, as repetições, que chegam e causam surpresa. Pode ser também pela leitura de contos que ficam realmente em aberto, até contos infantis. Por exemplo, O Mistério do Coelho Pensante fica em aberto. Já trabalhei ele com crianças e elas dão um final para o conto. Alguns procuram um final feliz, mas há aqueles como uma menina que me disse: “O coelhinho fugia da gaiola pelo pensamento”. A criança foi na direção daquilo que a própria Clarice poderia querer dizer. Acho que o importante é apelar para esses tipos de abordagem, de não fechar o texto… Porque o adulto é muito apressadinho. Ele já quer saber o que foi, qual a interpretação, o que o autor quis dizer e, na verdade, a gente não sabe, o texto é aberto.

CE: Que obras a senhora indicaria para um professor que está começando a trabalhar Clarice Lispector em turma, pensando na formação de leitores e não apenas em exames vestibulares?

OS: Acho que os contos são maravilhosos para isso. Não se deve começar nunca pela A Maçã no Escuro, que é uma floresta de signos de difícil abordagem. Começar ou pelo Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres ou pelos contos, como eu já disse. Depois de certo tempo, A Paixão Segundo GH, mas esse apenas para certo tipo de leitor. A própria Clarice disse que encontrou um professor no Rio de Janeiro que deixou o livro de lado, não gostou, e que uma mocinha, ainda estudante, fez da obra seu livro de cabeceira. Então você vê que não é questão de idade, mas de afinidade. Perto do Coração Selvagem não é um livro difícil hoje em dia. Então é isso, deve-se começar ou pelos contos, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e não começar pela A Maçã no Escuro, O Lustre, A Cidade Sitiada… A Hora da Estrela também é ótimo para começar.

CE: Uma separação por temas, como a que vem sendo feita pela Editora Rocco, facilita o trabalho de um formador de leitores dentro da sala de aula?

OS: Sim e não. Na verdade, com isso você começa a dar um sentido à obra, e a obra é mais rica e apela mais ao leitor quando é aberta, com várias significações. Então vai depender muito do tipo de professor e de alunado. Pode, sim, ter uma faixa que seja atingida por esse tipo de leitura, mas a crítica realmente é muito mais aberta do que isso e a leitura também. Assim, um leitor mais inteligente, mais apurado, provavelmente preferirá outro tipo de abordagem. Essa história também de fazer histórias em cima de contos de Clarice é um tipo de leitura que pode agradar a muitos que gostam de histórias com começo, meio e fim, mas certamente não foi avisada dos contos de Clarice, pois ela sempre deixou tudo muito aberto. Então depende do leitor, do professor, da escola e do tipo de cultura.

CE: Em questões temáticas, o que pode ser trabalhado na obra da Clarice?

OS: A morte, o significado do ser, a possibilidade da linguagem de ver o ser, o silêncio. Tenho dois armários só de obras com críticas de Clarice e você vê muitos livros que abordam esses temas, como o Mal também, por exemplo. São temas infinitos. Depende muito da capacidade do leitor em colher o tema. Por exemplo, em A Hora da Estrela, não há dúvida de que a morte, a gente poderia dizer, é a protagonista. Mas muitos não captam isso, não se interessam. Por isso eu acho que a temática na obra da Clarice varia na medida da percepção do leitor.

CE: A propósito, A Hora da Estrela está há anos em listas de vestibular. É uma boa obra para se colocar como leitura obrigatória? Que tipo de leitura essas provas exigem? A senhora concorda com o que costuma se cobrar nesses exames?

OS: Eu não conheço esse mundo de vestibular, o que conheço pelo contato com os jovens, é que a leitura que é feita é um pouco pobre. Por outro lado, o que você vai perguntar no vestibular? São perguntas que têm de ser objetivas, hoje em dias as redações já se abriram mais, mas, de qualquer maneira, você não tem muito por onde andar no vestibular. E A Hora da Estrela é um livro que pode ter uma leitura linear. Aliás, trabalhei um pouco com a (cineasta) Susana Amaral quando ela estava fazendo o filme (em 1986), e ela me disse que iria fazer um filme que o povo entendesse, portanto, com começo, meio e fim, e que não daria para colocar os aspectos metalinguísticos da obra. Nos filmes que têm narrador, ele começa a contar a história, você esquece que tem um narrador, porque você vê a história, e assim vai até o fim. O narrador, no filme, não resolve nada. A Hora da Estrela presta-se a esse tipo de abordagem porque, se você quiser, como acontece no filme, ele fica linear. Todo aspecto metalinguístico não precisa aparecer. É claro que reduz, mas não há outra maneira de fazer para ser objetivo.

CE: Pensando que você vai trabalhar o livro com um jovem para o vestibular, é possível trabalhar essa metalinguagem em outro momento? Como driblar esse viés para que a leitura seja mais completa? 

OS: A gente, como professor, quando passa o filme faz a observação: olha, aqui vocês veem a história linear da Macabea. Porém, lendo o livro, vocês vão ver que através ou por trás dessa história linear existe toda uma reflexão sobre a criação, sobre o tempo na narrativa, sobre a morte. São temas significativos que aparecem na obra inteira e que podem não aparecer num resumo. Acho que a questão é só de abordagem.

CE: É necessária alguma formação especial para o professor trabalhar com Clarice?

OS: Penso que o professor, para qualquer leitura de uma obra significativa da literatura, precisa ter sensibilidade, percepção e didática. A formação hoje está prejudicada e ninguém mais quer ser professor. É preciso ter esse gosto para ser professor, é preciso saber ensinar e dialogar, porque o ensino hoje não é só ficar falando e o aluno escutando, é um diálogo. É preciso tirar deles tudo o que for possível e aí construir. Às vezes, eles fazem encenações muito boas, até mesmo as crianças. Isso faz parte da flexibilidade que o professor precisa ter para ir ao encontro do gosto dos alunos sem deixar que a coisa caia no plano.

CE: As traduções recentes para outras línguas mudam o local que Clarice ocupa na literatura?

OS: Acredito que a tradução significa que a leitura está se ampliando, é um esforço de compreender outras culturas. O português é uma língua difícil de ser encarada. Se Machado de Assis tivesse escrito em inglês, ele seria o maior escritor da época. Ele foi, mas não era reconhecido por não escrever em uma língua palatável, coisa que o português não é. Acho que as traduções revelam a influência do autor, como ele está influindo em outras culturas, são um reflexo da influência do autor e do reconhecimento que ele tem.

CE: Entre todos os autores brasileiros, porque Clarice tem ganhado tanto destaque nessa cultura digital?

OS: Penso que é pela significação da sua obra. Uma autora que trata esses temas, que vai ao fundo do que é o ser, que vai a fundo nos problemas de linguagem, que coloca propriamente toda a sua vida em escrever. Tem um livro dela que fala assim: “Agora vou morrer um pouco”. O que é isso de morrer um pouco? É quando ela parava de escrever. Quando ela interrompia para fazer alguma coisa. Por outro lado, ela também se questionava: “Será que escrevendo eu também não perco a vida?” Então esse tipo de interrogação é universal. Os temas de Clarice são universais e por isso interessam a qualquer homem em qualquer lugar do planeta. Os livros de Clarice abrem um universo de diálogo com os jovens, com os alunos ou com qualquer pessoa, que é muito amplo e significativo. O professor que conseguir tocar essa tecla, de ser capaz de fazer o texto falar, terá resultados muito gratificantes. Agora, é claro que aquele professor que fica muito rígido, não tem abertura, esse não vai colher grandes frutos. Há muita margem, como há com outros escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, que dependem muito da capacidade de diálogo do professor.

Extraído do sítio CartaCapital

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