15 de abril de 2013

A MÚMIA DE BOLAÑO EM BARCELONA - Iuri Müller

Cotidiano foi feito de uma escritura frenética em Barcelona. Foto: herdeiros de Roberto Bolaño

Foi em 1977 que Roberto Bolaño escolheu a Catalunha como destino de vida e de escritura – como poderia ter escolhido o oeste da Rússia, a Dinamarca, a cordilheira dos Andes. Nascido em 1953 em Santiago do Chile, o autor de duas das narrativas mais impressionantes da literatura latino-americana nas últimas décadas – Os detetives selvagens e 2666– e de uma larga obra poética reunida em “La Universidad Desconocida”, teve pontos de referência cambiáveis e uma vontade enorme de transformar constantemente a vida.

São muitos os detalhes curiosos da biografia, como os ofícios incomuns que desempenhou para a sobrevivência, e é crescente o interesse dos leitores pela extensa literatura que construiu. Bolaño é um sucesso (póstumo, ainda que tenha conquistado leitores nos últimos anos de vida) de vendas na Europa e nos Estados Unidos. Se o seu cotidiano foi feito de uma escritura frenética e por passagens por estações de trem decadentes, hoje, dez anos depois da sua morte, Barcelona tenta abrigá-lo como filho ilustre – e expõe centenas de manuscritos inéditos no Centro de Cultura Contemporânea da cidade (CCCB).

A mostra, denominada em catalão Arxiu Bolaño (Arquivo Bolaño), ocupa as salas principais do instituto até o final de junho e aparece dividida em três partes bem definidas. A primeira dedicada à produção e residência do escritor em Barcelona, a segunda para os anos que passou em Girona e a terceira para o tempo em que viveu em Blanes, as três cidadãs catalãs nas quais Bolaño se dividiu nos últimos 25 anos de vida. Mais além de manuscritos originais das obras que elaborou em cada cidade, estão reproduções dos espaços que frequentava – um café em Blanes, a casa em Girona, as fotos com os amigos da época em Barcelona. A associação do trabalho do escritor com a Catalunha é direta, e bastaram poucos dias da inauguração da mostra para que fosse comentado o caráter nacionalista, e portanto contraditório, a partir das ideias do próprio Roberto, da exposição.

Atraído pelo projeto político de Salvador Allende no Chile. Foto: herdeiros de Roberto Bolaño

O escritor, é certo, sempre desprezou a noção de pátria, ou ao menos desde que deixou o Chile e errou pela América Latina, pela Cidade do México e por fim pela Europa. O sentimento patriótico não lhe passava nem ao lado, ainda que tenha se definido “latino-americano”, quando, já nas últimas entrevistas, algum jornalista lhe perguntou sobre identidade e referência. Também em declarações, chegou a dizer que sua única pátria eram os filhos Lautaro e Alexandra, e que “o nacionalismo é nefasto e cai por seu próprio peso”. No prefácio da novela “Amberes” (formada anarquicamente quase que só por frases soltas, algumas brilhantes) Bolaño escreve em tradução livre que “sentia-se a uma distância equidistante de todos os países”, e que à época vivia em Barcelona “à intempérie e sem permissão de residência tal como outros vivem em um castelo”. A causa separatista que Barcelona leva ao mundo para representar a até então comunidade autônoma da Catalunha, de todo modo, não deve ter sensibilizado Bolaño, que na juventude sentiu-se, sim, atraído pelo projeto político de Salvador Allende no Chile. Críticas à parte, a mesma exposição que sugere certa ligação exagerada do escritor com o lugar que residia mostra também o desgosto e a tristeza que, assim como as tardes de felicidade, surgiram em Barcelona.

Os arquivos apresentam desde detalhes para a satisfação particular do leitor (por exemplo, a comprovação de que Bolaño escrevia com uma letra miúda, e parecia fazer com que seis mil caracteres se encaixassem numa página pequena de caderno) como confissões da sua chegada à Catalunha. O diário de 1980 traz, entre os excertos, fragmentos que cobram alguma participação nos assuntos sociais (“comprométete, Roberto, mete la nariz en la causa de los pobres”), certo desespero cínico (“27 de abril. Miedo. Mi madre me he comprado una radio. Quieres arruinarme, mamá? Un poco más, un poco más aún. En el miedo y en Barcelona.”) e até mostras de evidente angústia: (“Estoy demasiado nervioso ya no puedo escribir (el idiota Roberto ha caído, hundido, sin control) y demasiado nervioso – demasiado solo – atrapado en esta ciudad de mierda”). Um dos méritos inegáveis do material é a chance de encontrar os textos que, mesmo invisíveis, sempre pareceram fazer parte dos seus livros: como o email que enviou para Jorge Herralde, editor de “Anagrama”, casa que publicou a maior parte da obra de Bolaño na Europa.

Arxiu Bolaño no CCCB de Barcelona. Foto – Iuri Müller

Na carta, Roberto tenta justificar a premiação do conto “Sensini” num concurso literário de San Sebastián, na Espanha, o que poderia atrapalhar a publicação de um livro que incluía o conto. Em “Sensini”, que pode ser encontrado na edição brasileira de “Chamadas telefônicas” (Companhia das Letras, 2012), o narrador conta a sua relação com um escritor argentino que, mesmo veterano no mundo das letras portenhas, ainda se arrisca com participações extenuantes nos mais diversos concursos literários que tem acesso. Daí a justificativa da premiação no mundo real, pelo próprio Bolaño: “A esta altura de la carta tú seguro que te estarás te preguntando por qué coño no participo con cuentos que no tenga comprometidos. Buena pregunta. Hay dos respuestas. Primera: no sé si recuerdas que uno de los argumentos de “Sensini” era el de los concursos literarios. La tentación de enviar el cuento a un concurso literario de verdad y de garnármelo, tal como pasa en el cuento, era excessiva. Segunda: no creí que me lo ganaría”.

Não mais do que vinte minutos de caminhada pelas salas do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona já bastam para revelar, também, que a obra de Bolaño tende a se multiplicar de forma irreversível. Novelas inacabadas já foram publicadas, e muito mais deve estar por vir. Dezenas de contos e quatro romances permanecem inéditos, segundo informações do próprio museu. De alguma maneira, o sucesso literário de Bolaño após a morte transformou o eixo de leitura e de apreciação dos seus livros. Pode ser que em algum momento o próprio Bolaño – quem sabe doente e sem dinheiro, mas sempre escrevendo de forma compulsiva – tenha se imaginado como um escritor de futuro apenas marginal. Hoje, os seus romances mais comentados recebem capas dignas de “A Cabana” em Portugal, por exemplo, e talvez Bolaño nunca tenha pensado que uma grande exposição com seus livros, cartas e escritos pessoais fosse existir, ainda que tenha construído, desde as primeiras páginas, o que ambicionava como uma obra de grandes proporções. Mas o fato é que o desejo de forjar uma literatura sólida e a chance de alcançar a ânsia muitas vezes não coincide. No caso de Bolaño, parece que houve essa sintonia.

O livro “Bolaño antes de Bolaño: diario de una residencia en Mexico”, do poeta chileno Jaime Quezada, que viveu na casa da família de Roberto no início dos anos 1970, traz o que hoje soa como uma anedota curiosa. Quezada conta que ele e Roberto saíam do Museu de Antropologia do México fascinados pela visão da múmia de uma índia tolteca, um dos povos pré-colombianos que habitaram o país, e que trazia na vestimenta vestígios de grãos de milho. Segundo o relato de Quezada, então teria dito Bolaño, aqui em livre tradução: “se eu toco esta múmia, estaria tocando o tempo. Se eu toco estes grãos de milho, estaria tocando a natureza. O inefável pode então ser tocado, Jaime! Nunca pensei que me comoveria visitando um museu. E quem olhará para nós alguma vez num museu, quando seremos terra e tempo?” No CCCB de Barcelona, entre os rastros de pó da sua antiga máquina de escrever e os manuscritos de um conto nunca publicado, de alguma forma descansa a múmia de Roberto Bolaño.

* Os trechos em itálico pertencem aos arquivos expostos no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona e, portanto, aos herdeiros de Roberto Bolaño. É o mesmo caso das duas primeiras fotografias que ilustram a matéria.

Extraído do sítio Sul21

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