28 de abril de 2013

COMO ANGOLA BRILHOU EM HAVANA


Quando este domingo o maciço reduto militar La Cabaña de Havana vir terminado o impressionante corrupio de visitantes em busca do saber dos livros e do doce prazer da poesia e da vida em prosa, a 22ª edição da Feira Internacional do Livro passará aos registos da memória como mais um certame cultural bem-sucedido dos muitos que fazem o prestígio de Cuba.

Para Angola, que se tornou frequentadora oficial da feira desde 2011, o ganho desta vez suplanta a simples participação para assumir o estatuto de primeira nação africana a quem o evento é dedicado. Sem dúvidas, um selo de eleição que fez pelo nome do país quase tanto ou mais que dezenas de diligências diplomáticas. De resto, é sempre assim na relação entre os povos: os contactos no terreno, o intercâmbio multidisciplinar mano-a-mano, o calor e a empatia do diálogo presencial, encurtam distâncias e aceleram dinâmicas.

Se é verdade que Angola e Cuba lidam há muito, desde que a geração do hoje general António dos Santos França “Ndalu” aqui veio adentrar-se nos manejos da arte da guerra de guerrilha ou o lendário Ernesto Che Guevara foi a Brazzaville levar solidariedade aos combatentes do MPLA, na década de 60, não será menos certo notar que um conhecimento entre os dois povos, naquilo que são as suas expressões do quotidiano, sempre andou aquém do que seria desejável. Muito, se calhar, por culpa da própria distância geográfica; ou, quem sabe, como resultado das próprias urgências dos processos políticos, suas prioridades e limitações materiais…

Em bom rigor, não se dirá que tenha havido ao longo de décadas de relações algum tipo de vazio ou deserto exasperantes, nada disso, mas percebe-se, quando se olha para o que está feito, que poderia ter havido muito mais. Por exemplo: não se compram livros de autores angolanos em livrarias de Cuba ou, na inversa, Luanda não tem um lugar onde se possa adquirir em permanência saberes sobre este arquipélago caribenho na verdade muito mais próximo e familiar do que se pensa, se nos ativermos ao dado histórico de que, nas suas costas, desembarcaram escravos saídos dos espaços geográficos da actual Angola. A escrava Carlota que deu nome à missão militar de ajuda a Angola por parte de Cuba era natural de Angola e o tubérculo tão presente na dieta cubana conhecido como malanga conserva o mesmo nome em kikongo que veio com os barcos negreiros.

TRÊS RICOS TÚNEIS

A começar, deve explicar-se que a Feira Internacional do Livro de Havana decorre de um modo muito peculiar. Na fortaleza de San Carlos de La Cabaña, um colossal reduto militar erguido no século XV pelos espanhóis para defesa de Havana contra piratas e corsários, funciona a sede principal do certame, com centenas de stands de casas editoras dos países participantes (perto de meia centena), salas para apresentação de livros, debates com autores, sessões de autógrafos, negociações entre escritores e editoras, venda de livros e acções afins, mas espalhados por diferentes pontos da vasta capital de Cuba desenrolam-se também numerosos eventos relacionados com a Feira.

Angola, país homenageado desta edição, esteve em todo o lado, num sensacional desdobramento que tanto deu a ouvir poesia declamada por Manuel Rui e Roderick Nehone na Casa da Poesia localizada no centro de Havana, ou emotivas evocações da figura de Neto, sempre com muitas lágrimas à mistura, na Casa de África, em pleno coração de Havana Velha, a poucos quarteirões da mítica ‘La Bodeguita del Medio”, provavelmente o mais famoso bar-restaurante do mundo.

Mas o ‘quartel-general’, o centro nevrálgico de toda esta complexa, multidisciplinar e movimentada acção cultural angolana em Cuba, acabou mesmo por ficar instalado no lugar-sede da Feira, La Cabaña, onde Angola beneficiou de um espaço generoso para o seu pavilhão, designadamente três salões em forma de túneis.

Foi ali que se montou a sala ‘Cordeiro da Mata’, lugar de tertúlias e tudo o mais que se possa imaginar à volta da apresentação de livros e debates; também uma galeria com quadros de Francisco Van-Dunem ‘Van’ e Jorge Gumbe, esculturas de Etona, Mayembe e Suzana David ‘Kiana’, ao lado da pintura magistral de alguns dos mais prestigiados nomes de Cuba, como Ernesto García Peña, Rafael Zarza, Nelson Domínguez, Rafael Paneca e Eduardo Roca Salazar ‘Choco’, este último mestre que há muitos anos foi professor de hoje consagrados nossos como Gumbe e Van.

Na sala 2 Angola expôs basicamente artesanato e imagens fotográficas de monumentos e sítios emblemáticos como a cidade de Mbanza Congo –candidata a património da Humanidade -, o Museu da Escravatura, a Serra da Leba e as célebres pinturas rupestres de Tchitundu-Hulu (Namibe). Ao lado funcionou o túnel erigido a um quase estatuto de ex-libris, mais por força do objecto da Feira que por qualquer outra razão específica: a área dos stands editoriais, com o mais representativo das letras de Angola.

Ali, os visitantes – que foram aos milhares – viram painéis gigantes com fotos, bibliografia e breves excertos de livros, de prosadores e poetas angolanos de distintas gerações, desde Cordeiro da Mata, Ernesto Lara Filho, Alda Lara, Agostinho Neto, Luandino Vieira, António Jacinto, Mário António, Maria Eugénia Neto, Arnaldo Santos, Manuel Rui Monteiro, Pepetela, Roderick Nehone, António Gonçalves, Abreu Paxe, José Luís Mendonça, João Melo, Luís Kandjimbo, João Maimona e Luís Fernando, entre outros.

Os que puderam – muito poucos por sinal, pois por incompreensível erro de avaliação de mercado, as editoras angolanas trouxeram a Havana os seus tradicionais preços elevados- adquiriram títulos de entre a oferta diversificada que encheu os stands da Mayamba, Chá de Caxinde, Kilombelombe, INALD e outras casas de edição. 

VALÓDIA NO TEATRO MELLA

Quando se fizer o rescaldo do desempenho da vasta caravana cultural angolana que viajou até Cuba este Fevereiro, o acontecimento do dia 16, sábado, num dos lugares mais solicitados da capital cubana para eventos de sala, o teatro Mella, vai ficar no topo dos registos por tudo o que ele simbolizou, desde o reavivar de emoções nunca esquecidas à confirmação do potencial de mercado que Cuba pode ser, afinal, para os nossos criadores.

Os que viveram a noite sabem que testemunharam uma jornada abençoada. Aqueles que se sentiram bem em não reprimir as lágrimas de emoção foram, além de autênticos, intensamente felizes.

Em plena meca da música, Havana, alguns dos mais brilhantes porta-estandartes da criação angolana nesse domínio, como Gabriel Tchiema, Banda Akapaná, Ângela Ferrão, Tony Amado e o sempre denso menino da Lixeira Matias Damásio, encheram de orgulho Angola e quem a ama, com a sua magnífica actuação naquela sala preenchida por um público vibrante, rendido e levado ao delírio.

Momento à parte, muito à parte, foi a actuação de Santocas, cirurgicamente gizada para chegar ao âmago dos que sabem o que foi conquistar a Independência de Angola, não no largo 1º de Maio mas no silvar dos obuses a poucos quilómetros dali, na duríssima batalha de Kifandongo. Cantar Valódia e Massacre de Kifangondo, numa terra onde a cubana Beatriz Márquez as popularizou, é, só pode ser, um irresistível convite para um retorno mais do que melódico àquele passado épico do “Sim, camarada” de Manuel Rui Monteiro, que quer dizer, no fundo, os coléricos tempos de revolução de arma na mão, para que os sonhos alimentados na guerrilha não soçobrassem à mão de invasores e seus cúmplices da casa.

Ganha a noite de sábado, o Mella voltou a ter Angola num patamar cultural muito elevado no domingo quando a Companhia de Dança Contemporânea, da coreógrafa Ana Clara Guerra Márquez, exibiu “Paisagens Conducentes”, peça inspirada na vida e obra de Ruy Duarte de Carvalho. Nada melhor para fechar em apoteose, nesse lugar, os actos colaterais da participação de escritores angolanos na Feira do Livro de Havana.

Extraído do sítio O País

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