28 de abril de 2013

TAMIM AL-BARGHOUTI FALA SOBRE IMPACTO DA POESIA NA PRIMAVERA ÁRABE - Pedro Sprejer

Presença confirmada na Flip, em julho, o poeta egípcio de origem palestina analisa o movimento dois anos após a tomada da Praça Tahrir. Para Al-Barghouti, a mera existência de uma poesia árabe é um ato de resistência que zomba das fronteiras, dos governos e da ordem colonial.


Através de um telão improvisado com lençóis brancos e um sistema de alto-falantes, os versos de Tamim al-Barghouti se espalharam pela Praça Tahrir lotada de manifestantes, que saíram às ruas do Cairo para cobrar a renúncia do presidente egípcio Hosni Mubarak, em janeiro de 2011. O protesto fez parte da chamada Primavera Árabe, movimento que derrubou governos autoritários na Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Intitulado “Oh, Egito, está perto”, o poema de Al-Barghouti tornou-se logo uma espécie de hino.

Passados mais de dois anos, a Primavera deu lugar a um período tempestuoso no Egito, agora comandado pela Irmandade Muçulmana. Paralelamente, a guerra civil jogou a vizinha Síria nas trevas e ameaça os países ao redor. Diante da crise, a poesia, um modo de expressão valorizado na tradição árabe, invadiu as ruas, do Iêmen à Faixa de Gaza.

— Uma coisa que as revoluções no mundo árabe fizeram é que todos agora escrevem poesia, e todos querem escutá-la — contou Al-Barghouti, em entrevista exclusiva ao Prosa por e-mail, na qual analisou o papel da poesia nos protestos e falou sobre suas expectativas em relação à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, onde participará de uma mesa sobre literatura e política.

Nascido no Egito em 1977, filho do renomado poeta palestino Mourid Barghouti (que esteve na Flip em 2006, numa mesa com Ferreira Gullar) e da escritora egípcia Radwa Ashour, Al-Barghouti é também um cientista político. Autor de livros sobre história e cultura árabe, além de coletâneas de poesias, ele atualmente é professor da Universidade de Georgetown, nos EUA, onde vive.

Seus versos ganharam fama internacional em 2007, quando declamou o poema “Em Jerusalém” no programa “Príncipe dos Poetas”, uma espécie de “American Idol” dos bardos, transmitido para milhões de telespectadores árabes. Mesmo não vencendo, foi aclamado na internet, viu seus versos em cartazes nas cidades palestinas, sua voz reproduzida em ringtones de celular e se afirmou como um dos mais importantes poetas de sua geração.

Como você se sentiu ao ver seus poemas declamados em diversos países e entoados por uma multidão na Praça Tahrir?

Eu me senti feliz, grato, sufocado e um pouco assustado, me senti responsável pela conservação daquele tipo de amor e honra. Por um lado, você deve se observar para não perder totalmente a identidade individual, tornando-se um mero porta-voz. Se você perder a si mesmo para as pessoas, você perde as pessoas. Por outro lado, você nunca deve se tornar um egoísta depressivo e introvertido que ignora aqueles que o escutam. O poema cantado na Praça Tahrir foi escrito nos dois primeiros dias da revolução. No terceiro dia, uma quinta-feira, consegui fazer com que a TV Al-Jazeera o transmitisse. Os manifestantes fizeram uma tela com lençóis brancos e o poema foi exibido na praça a cada poucas horas. O compositor Mustafa Said, hoje um grande amigo, ouviu e aprendeu os versos ali. No sábado, ele os transformou em canção.

Neste momento histórico, a poesia pode contribuir na luta pela democracia no mundo árabe?

Sim. A poesia é uma forma mais eficiente de falar, intensificar e aprofundar o significado das palavras. A relação entre poesia e identidade perdurou ao longo de toda a história árabe. Quando a sociedade se definia em termos de tribos, o poeta era o poeta da tribo. Quando era um califado, o poeta cantava para o califa. Na era moderna, quando a sociedade define-se em termos de “o povo” ou “a nação”, o poeta tornou-se a voz do povo. Mesmo quando os movimentos árabes de libertação nacional do século XX fracassaram e a sociedade se decompôs em indivíduos introvertidos, autocentrados e deprimidos, cresceram escolas de poetas árabes voltados para o indivíduo. No início do século XXI, nós experimentos um sentimento coletivo de perigo. Era como se depressão e tristeza fossem luxos. Poucos antes, ao longo dos anos 1990, 5 mil iraquianos haviam morrido por mês por causa do embargo conduzido pelos EUA. Quando Madeleine Albright, ex-secretária de Estado americana, foi perguntada na TV se valeu a pena matar meio milhão de crianças iraquianas para derrubar Saddam Hussein, ela disse “sim”. A sensação de uma ameaça existencial física para os árabes era esmagadora, o que as guerras americanas no Afeganistão, no Iraque e os ataques israelenses na Cisjordânia, em Gaza e no Líbano apenas aumentaram. Daquele momento em diante, emerge uma escola de poesia que busca uma reconexão com o coletivo.

Quais seriam as principais características dessa escola?

Nós escrevemos em uma linguagem que todos possam entender, pensamos em tradição como um ativo e não um passivo, criamos novas técnicas, mas também podemos ser inspirados por formas que remetem ao início da Idade Média. O objetivo é criar um senso de dignidade, merecimento, empoderamento, coragem e vontade de lutar, de sobreviver e de tentar usar a imaginação para tornar o mundo real melhor.

Que lugar a poesia ocupa dentro da tradição cultural árabe?

É interessante notar que a raiz da palavra árabe para comunidade ou nação, “Umma”, tem como sinônimo a raiz da palavra árabe poema, “qaseeda”. Conceitualmente, Umma é qualquer número de pessoas que seguem um ideal, uma imagem, um exemplo, normalmente expresso em um texto ou conjunto de textos. As pessoas que seguem esse exemplo só estariam seguindo a sua própria interpretação do mesmo, portanto, sua própria imaginação. A criação de tal autoimagem, na tradição secular árabe, é a função da poesia, e na tradição religiosa, a função dos textos religiosos. É como ter uma comunidade cuja constituição é um poema, ou um texto religioso rimado e cheio de metáforas, com muitas interpretações. Ambas as raízes, “amm” para “Umma” e “qasad” para “qaseeda”, significam ter intenção de ir a um determinado destino, ou seguir uma imagem ou um ideal. 


Você concorda com o termo “poesia de protesto” para descrever o seu trabalho?

Não, a poesia é apenas uma forma mais eficiente de expressão. Mas o fato de eu, ou minha sociedade, estarmos em um estado de rebelião ou engajados em uma luta colonial pela maior parte dos últimos dois séculos vai certamente se refletir naquilo que digo. Os árabes foram divididos em 22 estados soberanos por potências coloniais, o que garantiu sua dependência econômica e vulnerabilidade militar. As fronteiras foram traçadas em mapas, arames farpados foram estendidos no deserto. Constituíram exércitos, burocracias e forças policiais cuja principal tarefa era proteger o interesse de seus criadores coloniais. No entanto, o colonialismo não conseguiu convencer a maioria dos árabes de suas novas identidades. Ele dividiu a terra, mas não a linguagem; confinou as pessoas, mas não a sua imaginação. Portanto, hoje a mera existência de uma poesia árabe é um ato de resistência. Ela zomba das fronteiras, dos governos e dos ditames da ordem internacional colonial e neocolonial. Versos de um poeta tunisiano do início do século XX foram cantados no Egito e no Iêmen durante as recentes revoluções, poesias sobre a Palestina estiveram presentes nos cânticos de quase todos os protestos árabes, não só agora, mas durante os últimos 60 anos.

Como a poesia contribuiu com a Primavera Árabe, e como o movimento tornou a poesia mais popular nos países árabes?

Uma coisa que as revoluções no mundo árabe fizeram foi que todos agora escrevem ou tentam escrever poesia, e todos querem escutá-la. Note que eu digo “escutar”, pois em nossa parte do mundo preferimos ouvir poesia do que apenas ler. A poesia também esteve presente nas revoluções árabes na maneira surpreendente como elas se organizaram. Ao contrário de revoluções com base em estruturas piramidais de partidos revolucionários clássicos ou golpes de Estado, os manifestantes que tomaram as ruas do Cairo e de Túnis não tinham qualquer central de comando ou liderança designada. Assim como a boa e velha “umma”, eles estavam seguindo um conjunto de ideias e ideais em sua própria imaginação. Essas imagens significam coisas diferentes para pessoas diferentes, mas tinham em comum o suficiente para fazê-los agir coletivamente e em perfeita harmonia, eficiência e coordenação. Ao invés de tentar tomar o controle do Estado, eles simplesmente o transcenderam. Nos 18 dias da revolução egípcia, os 20 milhões de egípcios nas ruas foram capazes de gerenciar a segurança, administrar os suprimentos e gerenciar a comunicação sem ter qualquer ministério constituído. E o mais importante é que eles foram capazes de gerenciar a defesa e as relações exteriores tão bem que os militares e os EUA não tiveram como manter o presidente Mubarak . A revolução em si foi, portanto, um ideal, um poema, uma proeza de imaginação capaz de derrubar a realidade concreta desprovida de imaginação instalada pelo colonialismo.

O seu poema “Em Jerusalém” parece evocar um sentimento de exclusão. Porque tantos se identificaram com tais versos?

Porque quase todo árabe é um palestino. E Jerusalém sempre foi a cidade que pertence àqueles que são excluídos dela, aos que não estão autorizados a chegar lá. Jerusalém é um daqueles lugares associados ao martírio, ao triunfo dos oprimidos. Os reis de Jerusalém devem ser aqueles com coroas de espinhos e não aqueles com coroas de ouro e cabeças nucleares. O problema na Palestina não está na presença de pessoas de diferentes credos, a Palestina é uma terra com um significado simbólico para muitas culturas e religiões. O problema acontece, como sempre, quando um grupo de pessoas pensa que tem mais direitos. Qualquer homem ou mulher da fé judaica pode se tornar um cidadão de Israel, palestinos que foram expulsos de suas casas pelas forças israelenses em 1948 não estão autorizados a voltar. Se os palestinos se tornassem judeus amanhã, eles seriam autorizados a voltar. A razão pela qual eles estão em campos de refugiados é que eles parecem ter a religião errada! A exclusão dos palestinos por parte de Israel não é apenas uma ofensa contra eles, mas contra os árabes, os muçulmanos, os cristãos e todos que acreditam na igualdade humana.

Mais de dois anos depois, a energia da Primavera Árabe se dissipou?

As revoluções árabes ainda podem evoluir se evitarmos uma guerra civil total entre sunitas e xiitas na Síria, Líbano e Iraque. Uma guerra financiada, armada e apoiada pelos EUA, Otan e Arábia Saudita. Com isso, seremos capazes de livrar todo o Oriente Médio da hegemonia americana. Se não fosse pela catástrofe da Síria, as revoluções árabes poderiam ter realizado seu potencial de reorganizar o equilíbrio global de poder e acelerar a transição de um sistema mundial unipolar para outro multipolar.

Ainda há esperança?

Acho que há. Afinal, no Iraque e na Síria, os americanos mudaram seu apoio entre sunitas e xiitas tantas vezes que hoje há pouca confiança neles. As pessoas estão se tornando cada vez mais conscientes de que esta é a clássica tática de dividir para reinar, nada de novo. Além disso, se as coisas ficarem bem no Egito, o resto da região o seguirá. As coisas não estão indo bem agora, mas vão dar certo, pois todas as condições estruturais estão lá. Você tem uma população cada vez mais engajada, ativa e consciente, e um aparato de segurança enfraquecido, que não pode oprimir em larga escala. E os EUA, que não estão em posição de impor violentamente a sua hegemonia. O Egito vai se libertar da influência americana, e junto com o Irã e a Turquia será capaz de reorganizar o Oriente Médio.

O que você espera encontrar em sua primeira visita ao Brasil?

Estou muito animado para conhecer o Brasil. Para as pessoas da minha região, o Brasil é um desses exemplos com os quais gostaríamos de aprender. Temos muito em comum com a América Latina em geral, uma região que tem conseguido alcançar o que deseja: romper com a hegemonia dos EUA, independência, desenvolvimento econômico e justiça social. Na verdade, esperamos que um dia os árabes, os iranianos e os turcos possam tornar-se parte dos BRICS, para lutarmos juntos por um mundo com um melhor senso de igualdade e justiça.

Extraído do sítio O Globo

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