15 de abril de 2013

TÃO NOTÁVEIS COMO DESCONHECIDOS - Bruno Garcia

Lançamento de traduções para o português de clássicos do modernismo austríaco jogam luz sobre um dos momentos mais decisivos da história do século XX.

Capa do livro A carta de Lord Chandos, de Hugo von Hofmannsthal

Dois lançamentos recentes passaram injustamente distantes da grande imprensa. A carta de Lord Chandos de Hugo von Hofmannsthal e A morte de virgilio de Hermann Broch, publicados respectivamente pela Chão de Feira e a Benvirá, são clássicos incontestes de um dos períodos mais importantes da história intelectual do mundo contemporâneo: o modernismo austríaco da virada do século XIX para o XX. 

Falando sobre a gigantesca – e às vezes esquecida – influência do antigo Império Austro Húngaro sobre o século XX ocidental, o grande crítico literário norte americano George Steiner afirmou que “o ocidente é, em aspectos essenciais, um produto de exportação austro húngaro”. A ênfase, ainda que possa a primeira vista soar um exagero, talvez seja mesmo necessária. A Viena de fin de siécleabrigou uma das gerações mais brilhantes e transgressoras da história. Em muitos aspectos, fundadora de novos paradigmas. Todos gênios, regidos simultaneamente pela perplexidade do esgotamento do antigo regime e carentes de uma orientação segura sobre o que viriam a enfrentar. Habitantes de um regime comprometido em manter em suspenso um passado monárquico-aristocrático até o último momento.

Segundo Steiner, devemos a Freud o mapeamento da vida interior, a Wittgenstein a filosofia e o papel da linguagem e a Robert Musil a narração introspectiva e a experimentação lírica. Como se não bastasse, o país que abrigou Mozart e Beethoven ainda revolucionou a música clássica com nomes como Gustav Mahler e Arnold Schoenberg e foi o berço de alguns dos maiores arquitetos modernos, incluindo Adolf Loos. Tudo isso em um intervalo entre 1880 e 1914.

Separadamente, todos esses nomes são razoavelmente reconhecidos, cada um no seu campo. Vista de um ponto geral, contudo, Viena e seu moribundo império são mais famosos por terem incitado o ódio ao jovem Hitler, que desde muito cedo aprendeu a detestar a cidade e seus modernistas, e por iniciar a catástrofe do século XX ao dar o estopim à Primeira Guerra Mundial depois que o herdeiro ao trono foi assassinado por um jovem nacionalista em Sarajevo. Nada mais injusto.

A grande virada cultural

O final do século XIX foi consagrado pela exaustão de um sistema de crenças tanto na ciência, que pretendia explicar o mundo tal como ele é, quanto nas nossas formas de arte e linguagem, que sonhavam com a mesma precisão em representa-lo. Muitos foram os sintomas de esgotamento, mas em nenhum outro lugar esse fenômeno foi tão notável. Do inconsciente à música dodecafônica, Viena redefiniu de forma extraordinária a própria forma de entender e retratar o real em diferentes narrativas. 

Entre os grandes austríacos desse período estava Hugo Von Hofmannsthal. Escritor de mão cheia e gênio prodígio, Hofmannsthal se destacou muito cedo, com pouco mais de 20 anos já era figura muito respeitada. Sua obra máxima, Carta a Lord Chandols, sintetiza como poucos o novo espírito nascente do século XX ao confrontar o fracasso da razão e das promessas otimistas da modernidade europeia.

Viena no início do século XX

Paradoxalmente, o modernismo europeu significa precisamente uma ruptura com o projeto moderno de emancipação iluminista através da razão. Hofmannsthal cria um personagem, Lord Philip Chandos que decide escrever ao notável Francis Bacon (1561-1626), filósofo britânico protagonista na revolução científica do século XVII. O protagonista se dirige ao fundador do racionalismo moderno confessando sua desistência: “perdi completamente a capacidade de pensar ou falar coerentemente sobre o que quer que seja”.

Essa perda não é resultado de uma indisposição pessoal de Chandos. Hofmannsthal está anunciado a própria descrença na linguagem enquanto forma capaz de apresentar ou representar a realidade de alguma maneira confiável. Uma descrença razoavelmente partilhada por sua geração. Entre as transformações paralelas à escrita do autor austríaco estavam o princípio da incerteza e a teoria da relatividade na física, o nascimento da pintura abstrata e a narrativa livre de fluxo de consciência.

É justamente nessa forma narrativa que Hermann Broch se destaca. Autor de um conjunto de ensaios e novelas, muitos ainda sem tradução para o português, Broch é sem dúvida um dos maiores escritores do começo do século XX, mas só decidiu pela literatura depois dos 40 anos de idade. Era amigo de grandes nomes como Rainer Maria Rilke e Elias Canetti. Preso em 1938, depois da anexação da Áustria pelos nazistas, só conseguiu ser liberto por um grupo de amigos intelectuais (entre eles, James Joyce).

A morte de Virgílio é escrito no exílio nos Estados Unidos e conta as últimas 18 horas da vida do poeta romano. Mas não se engane o leitor, a referência ao poeta romano é o pretexto para uma narrativa brilhante e radicalmente inovadora sobre o fluxo de consciência, muitas vezes um monólogo interior acerca da percepção da morte. Um tipo de escrita que estava sendo igualmente explorado por muitos dos seus conterrâneos, mas que fez de Broch um dos maiores mestres dessa arte.

Ilustres desconhecidos, gênios de um tempo que merece novos estudos e trabalhos. Recebem agora no Brasil traduções condizentes com sua grandeza. Absolutamente imperdível!

Extraído do sítio Revista de História

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.