16 de junho de 2013

A ESTÉTICA DA SACANAGEM NA LITERATURA BRASILEIRA - Filipe Manoukian


Escritores Reinaldo Moraes e Eliane de Moraes discutem libertinagem e erotismo em São Francisco.

“Você só consegue traduzir quando entra na persona do escritor. Eu traduzi um livro do Bukowski chamado ‘Mulheres’ (Brasiliense, 1984), o segundo publicado no Brasil, e me diverti muito. Eu era o Bukowski, sabe? Durante a tradução, em 1983, aconteciam-me coisas muito parecidas com aquele personagem, Henry Chinaski - um ‘véio bebum’ que já tinha uma certa reputação como escritor, mas sempre em meios universitários, em bares baratos, das putas...”

Reinaldo Moraes, 63, continua a história, contada na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2010 a Ramon Mello: “No dia que entreguei a tradução, inclusive para o Luiz Schwarcz, saí da Brasiliense com um alívio: ‘puta, acabei finalmente esse trampo’. E fui andando pelas ruas e sentei no bar. E chega uma menina que falei: ‘puta que pariu, essa menina saiu do ‘Mulheres’ do Bukowski!’. Uma mulher super rampeira, mas gostosona, com uma camisa desabotoada e amarrada numa barriga proeminente, uma calça com um bundão, sandália de salto alto, unha pintada”.

Resultado? “Ela sentou ao meu lado, pediu o meu jornal para ler. ‘Você sabe de um filme legal?’ Começou a puxar papo comigo, o negócio foi... Aí, bicho, eu acabei transando com a mulher num motel vagabundo. Era uma mulher completamente ‘bukowskiana’. Um fato patafísico, a mistura do imaginário com o real de uma forma surpreendente”.

Se Charles Bukowski (1920-1994), dono de uma linguagem coloquial, direta, sabia como poucos descrever uma mulher - quem não se apaixonou pela Dona Morte, “um glorioso barato de carne”, de “Pulp” (L&PM Pocket, 2009), não sabe o que é uma mulher sexy de verdade -, Reinaldo Moraes sabe como poucos narrar sacanagens. 

Estética do erotismo. E é sobre elas e seus personagens, com destaque para Ricardo, de “Tanto Faz” (Companhia das Letras, 1981) e José Carlos Ribeiro, o Zeca, de “Pornopopeia” (Objetiva, 2009), que ele conversa com a professora de Literatura Brasileira da USP Eliane Robert de Moraes hoje, na mesa “Libertinagem”, no Festival da Mantiqueira - Diálogos com a Literatura, em São Francisco Xavier (distrito de São José dos Campos).

“Ele (Moraes) lembra muito a classe média intelectualizada, mas que vive num trânsito da desordem, da droga, quase que caindo para a clandestinidade. Imagine esse cara que trabalha a libertinagem conversando com Eliane, que há muitos anos trabalha com Marques de Sade, com a questão do erotismo”, explicou a O VALE Heitor Ferraz, curador desta edição do festival.

A partir do questionamento “o tempo e o espaço determinam a estética do erotismo?”, Ferraz propõe uma discussão acerca da presença da libertinagem e do erotismo dentro da literatura segundo conceitos e valores adotados ou rejeitados pela sociedade. 

Moraes, por sua vez, simplifica toda essa dialética: “Qual é a relação entre história e sacanagem? Não sei. Erotismo é sacanagem com pedigree literário”, afirma.

Retrato da sociedade. Um tanto avesso a rótulos, discursos prontos e análises técnicas da literatura, Moraes conversou com O VALE por telefone na última semana.

“Quando você vai escrever uma cena de sacanagem, de sexo, o que o importa é o contexto da sua história. Sim, talvez você esteja repercutindo a história mundial, valores, de alguma forma. Mas essa é uma teia que não busco e não quero dominar”, afirmou.

Em linhas gerais, contudo, Moraes reconhece que seus livros, podem, sim, servir como uma fotografia da sociedade.

“A suruba do ‘Pornopopeia’, de alguma forma, automaticamente pinta um quadro social. Mas isso não tem valor científico, não pensei nisso.”

Ao relembrar o contexto que o cercava quando lançou seu livro de estreia, “Tanto Faz”, Moraes fala do paradoxo entre censura, que era forte à época, e sexualidade.

“Uma coisa óbvia é que você tem momentos históricos em que há a negação oficial da sexualidade. Durante a ditadura, temos aquelas coisas ridículas. O editor de fotografia tinha de negociar com o cara da censura uma foto no jornal. ‘Posso mostrar uma nádega só?’. Eu vi aquele filme do (Stanley) Kubrick, em 1978, 1979, “Laranja Mecânica”, e tinham umas bolinhas pretas que acompanhavam a bunda, o pau. Existe essa relação direta de expor a sensualidade com o período da censura”, conta Moraes.

Em “Tanto Faz”, o que Moraes fez de melhor foi tirar todo tipo de censura - e com traços marginais, por vezes escatológicos, assim como Bukowski o ensinara.

Numa das cenas mais cômicas do livro, Ricardo sofre com a conhecida “dor de barriga” enquanto está num processo de conquista de uma garota em seu apartamento em Paris.

No banheiro, a preocupação dele é com o barulho. Se, sentado no vaso sanitário ele consegue escutá-la folheando um livro, imagine a impressão que ele causava com o barulho de sua “dor de barriga”.

Libertinagem. E é ao contar a origem desses relatos que Moraes explica um pouco o funcionamento de seu processo criativo.

“Por mais próximo que eu esteja da realidade, sempre tem um momento que é um salto ficcional. O personagem obedece outra lógica. A ficção sempre se desloca da realidade”, disse.

Grosso modo, então, Moraes, para descomplicar tudo, seria mais fácil dizer que a literatura não tem compromisso com as interferências exteriores, nem tampouco com experiências reais? 

“Literatura, como sexo, é uma coisa mental. Da Vinci concordaria comigo, já que a frase original é dele”, disse Moraes em outra entrevista.

Prefiro beber a ler, diria o próprio Moraes para encerrar essa discussão - e talvez sua mesa no Festival da Mantiqueira em São Francisco Xavier. Melhor ir a um inferninho, conversar com as putas.

Extraído do sítio O Vale

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