25 de junho de 2013

JORGE DE SENA. O POETA QUE SE LIBERTOU DA MORTE SEM DEIXAR DE MORRER - Maria Ramos Silva


A voz de uma atenção sensível ao mundo, que "só há pouco começou a ser incorporada na cultura poética expressa em português". Maria Ramos Silva dá-lhe a conhecer a "Matéria Cúmplice" ensaiada por Jorge Fazenda Lourenço, que mereceu o prémio Jorge de Sena?

Ensaios sobre a recepção do poeta nos anos 40, sobre o romance de aprendizagem "Sinais de Fogo", e ainda a abordagem de tópicos como a Guerra Civil espanhola, o exílio e a diáspora, ao longo de um volume que ilumina o seu processo criativo. "Matéria Cúmplice. Cinco Aberturas e Um Prelúdio", dedicadas a um autor singular, valeu a Jorge Fazenda Lourenço o Prémio Jorge de Sena 2012.

É Professor Associado da FCH [Universidade Católica], onde é docente desde 1993, ano em que obteve o doutoramento pela Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, com uma tese sobre a poesia de Jorge de Sena. A passagem pela Califórnia foi de alguma forma inspirada pela estada nos EUA de Jorge de Sena?

Em 1988, quando fui para a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, já era um estudioso da obra de Jorge de Sena, com alguma obra publicada. Como a quase totalidade do seu espólio, além da sua vasta biblioteca, estava em Santa Bárbara, era imperativo estagiar em sua casa, o que durou cinco anos. Mas tudo se deveu a um desafio de Mécia de Sena, ao seu acolhimento inexcedível e à sua generosidade humana e intelectual. Sem ela eu não teria ido para os Estados Unidos.

Como encetou esta relação cúmplice com o autor?

Comecei a ler Jorge de Sena em meados dos anos 70, no decurso de uma adolescência muita desperta para os valores do amor, da justiça e da liberdade, que eram precisamente os valores que o poeta reclamava, em verso e em prosa. Depois seguiram-se 30 anos de leitura e de estudo. E como a cumplicidade vem com o desejo de conhecimento, desejar conhecer melhor acabou por fazer de mim um colaborador permanente de Mécia de Sena (há 25 anos) na organização e publicação da sua obra.

A estreia de Jorge de Sena nas letras conta com pouca recepção e uma crítica que revela pouco entusiasmo. Como vê esta reacção à época, protagonizada por nomes como João Gaspar Simões e João Pedro de Andrade?

A recepção crítica da obra de Jorge de Sena foi muito condicionada pelos critérios estéticos e políticos dominantes nas épocas em que foi publicada e com os quais a sua poesia nunca se conformou. Por exemplo, os primeiros livros de poesia, nos anos 40-50, nem obedecem aos princípios do lirismo sentimental, pré- -pessoano, nem aos ditames da poesia politicamente comprometida, mas também não seguem a terceira via do surrealismo romântico. Neste conflito de tendências, a afirmação da singularidade de Jorge de Sena não tinha condições para ser inteiramente reconhecida.

No plano da mera especulação, que impacto poderia ter a estreia de Sena caso acontecesse em 2013? Manter-se-ia porventura a pecha do suposto "hermetismo"?

Se surgisse "um Sena" em 2013, não seria certamente Jorge de Sena. Os poetas fundam-se num tempo e numa circunstância. Quanto ao "hermetismo", ele é sempre a denúncia de uma falência da crítica.

Sente que em algum momento do seu trajecto literário o autor consegue libertar-se do estigma "mais inteligente que poeta"?

A poesia de Jorge de Sena é uma forma de atenção ao mundo, de atenção sensível, e, como tal, uma inteligência amorosa, ou, se quiser, uma forma de sentir pensando e de pensar sentindo, como dizia outro dos poetas seus pares.

"Católico de religião, marxista em filosofia, liberal em política." Como resumiria o homem, tentando esquecer o escritor?

Jorge de Sena é paradoxal e heterodoxo. Mas eu não sei falar do "homem" sem falar do "escritor", em primeiro lugar porque não o conheci de facto, em segundo lugar porque creio na correlação de ambos e nas suas metamorfoses. Por outro, resumir seria diminuir um poeta que sempre soube expandir e diversificar a sua obra como um campo cada vez mais vasto de possibilidades.

"Oiçam como eu respiro", passou a vida a pedir, sem grande êxito, Jorge de Sena. Passados todos estes anos, continua incompreendido o ritmo respiratório da sua expressão poética?

Sim, naturalmente. A voz de Jorge de Sena, na sua pluralidade de tons e modulações, só há pouco começou a ser captada, difundida e incorporada na cultura poética que se expressa em português.

Qual a melhor forma de tomar o pulso ao poeta para quem "a poesia é uma busca de sentido para o desconserto do mundo"?

Ler Jorge de Sena em voz alta. Estudar a sua obra. Ficar a sós com ela. Habitar o desejo de cada poema. Escutar os seus clamores por justiça e liberdade.

A Guerra Civil de Espanha e a ditadura em Portugal. Sendo o primeiro dos eventos o grande acontecimento da sua juventude, é possível comparar o peso de cada uma das heranças na sua obra?

A investida militar contra a república espanhola e a ditadura portuguesa, financeira e provinciana (o nosso estado nada de novo), são duas faces de uma mesma Ibéria cruel e sombria, castradora de todos os sonhos de juventude.

"Em Creta com o Minotauro", de 65, lê-se: "Nascido em Portugal, de pais portugueses, e pai de brasileiros no Brasil, serei talvez norte-americano quando lá estiver [...]" Qual o impacto deste conjunto de raízes na obra do autor, que dizia mais adiante "Eu sou eu mesmo a minha pátria"?

Jorge de Sena começou por ser um exilado no seu próprio país e a sua vida foi como que um aprofundamento desse estado de exílio inicial e afinal iniciático. Se o exílio é uma iniciação no labirinto de uma condição inumana, o iniciado fica reduzido a um despojamento radical. Daí a coincidência paradoxal do eu e da pátria, que é redução especular da pessoa à sua circunstância, de "ser" expulso da "terra do pai". Mas quem da pátria se tira (ou é tirado) pode fazer-se cidadão do mundo.

O livro fecha com uma bibliografia, "Trinta anos de Jorge de Sena: 1982-2012". Que obras de Jorge de Sena recomendaria a alguém que se esteja a iniciar na sua leitura?

A escolha e as razões são sempre difíceis de apresentar. Tudo depende da situação de quem lê e do momento do encontro que é a leitura. Sem porquês: "Homenagem ao Papagaio Verde", "O Físico Prodigioso", "Uma Pequenina Luz", "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", "A Morte, o Espaço, a Eternidade", "Arte de Amar", "Fidelidade", "Chartres ou as Pazes com a Europa", "A Piaf", "Sinais de Fogo", ou apenas este verso, do poema "Glória": "Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer."

Extraído do sítio ionline.pt

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