3 de junho de 2013

UM LUGAR DE PORTO ALEGRE: A LIVRARIA CALLE CORRIENTES - Iuri Müller

Entre pôsteres de figuras peronistas e flâmulas do Racing Club, a Calle Corrientes reúne seu acervo na Rua Uruguai. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Se com as grandes redes do comércio de livros ocorre uma evidente padronização das lojas, as pequenas livrarias e sebos passam por um fenômeno distinto. Não poucas vezes, a organização das estantes, as particularidades do catálogo e até mesmo as minúcias assumem o rosto do livreiro. Na livraria Calle Corrientes, situada na Rua Uruguai, em pleno centro de Porto Alegre, boa parte do que está ali se relaciona com a história de vida de Miguel Gómez, o responsável pela particular lógica interna do estabelecimento.

Miguel nasceu em Laprida, pequena cidade da Província de Buenos Aires. Dali, rumou para La Plata, onde estudou cinema nos anos 1970. Qualquer evocação desta década, na América Latina, traz à tona o contexto político das ditaduras que sufocaram o continente, com inegável agressividade nos países do Rio da Prata. Naquele tempo, ainda não estavam nos planos de Miguel os livros, a viagem ao Brasil, a residência em Porto Alegre, e muito menos a pequena sala no centro da capital, próxima ao Guaíba e aos galpões da Avenida Mauá. Mas, como em tantos outros casos, a ditadura militar revirou os papeis e forçou adaptações impensadas.

O livreiro Miguel Gómez comercializa livros novos e usados. Os mais buscados pela clientela são clássicos da literatura do continente. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

A despedida a La Plata se deu, segundo o próprio livreiro, por necessidade, “por uma questão de segurança e saúde”. Poucos meses após o golpe de Estado de 1976, que levou Jorge Rafael Videla ao poder, Miguel Gómez teve a casa invadida por militares. À época, ele atuava nos setores da base do peronismo, uma das linhas políticas mais perseguidas pelo regime militar. Mesmo “sem nunca ter disparado um tiro” e ser um “perejil” na organização – o militante que se ocupava das tarefas de base e estudantis – permanecer em La Plata seria arriscado demais.

Miguel deixou o país e empreendeu viagem para Porto Alegre, cidade que recebeu centenas de exilados políticos latino-americanos. Por muitos anos, seguiu perto das câmeras, mas não as do cinema que estudava em La Plata. Gómez encontrou na televisão a possibilidade de trabalhar na nova terra, e acompanhou repórteres na Guaíba, de Porto Alegre, e na Rede Globo, nos anos em que viveu no Rio de Janeiro. Certo cansaço com a profissão e a observação de que a literatura hispano-americana ainda não tinha lugar na cidade fizeram com que entrasse no mundo livresco.

Miguel deixou a Argentina na década de 1970, poucos meses após o golpe de Estado que levou os militares ao poder. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Definido o eixo principal do estoque – literatura e história em língua espanhola – Miguel batizou a livraria com o nome de uma das mais movimentadas ruas do centro de Buenos Aires, a Calle Corrientes, travessia célebre justamente pelo comércio de livros na capital argentina. Os primeiros tempos, quando a loja ainda tinha a sede na Rua da Ladeira, também no centro, foram de vendas magras e aprendizado com as negociações. “O mais difícil era acertar no que comprar, nos títulos e na quantidade. No início, errava muito. Alguns livros demoravam muito para sair, ainda não sabia o que interessava ao cliente”, conta.

Segundo o livreiro, a maior parte do público sempre se constituiu de gaúchos que se interessavam pela literatura ou por temas relacionados aos países do Prata. “Desde o início, vendi bem mais para brasileiros, ainda que Porto Alegre tenha muitos imigrantes”. A sala que a Calle Corrientes ocupa no número 35 da Rua Uruguai é quase escondida pelas pilhas de livros, mas, pelas paredes, há sinais que indicam o que se pode encontrar por ali. Próxima à janela, uma flâmula do Racing Club de Avellaneda revela a preferência futebolística. No entanto, há livros e dvd’s sobre os cinco grandes clubes do futebol argentino – e, queira-se ou não, o mais procurado segue sendo o Boca Juniors.

Quanto à literatura, Miguel conta que os clientes não chegam a surpreender. Os livros mais buscados são clássicos da literatura argentina e latino-americana, como as obras de Jorge Luis Borges, Ernesto Sábato, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Ainda assim, a Calle Corrientes pode satisfazer o cliente que busca exemplares que raramente seriam encontrados nas lojas tradicionais. Em termos de poesia, é possível achar tomos do peruano Cesar Vallejo e do argentino Juan Gelman. Na prosa, a melancólica narrativa de Juan Carlos Onetti se acomoda bem nas prateleiras do fundo. Também há material farto sobre a histórica política e social da América Latina, com maior atenção para as décadas recentes.

Algumas vezes por ano, a Calle Corrientes vai para as ruas: Miguel participa das feiras de Porto Alegre, Santa Maria e Caxias do Sul. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Algumas vezes por ano, Miguel deixa a sala 231 de um dos maiores prédios da Rua Uruguai e acomoda os livros em praças públicas. A Calle Corrientes participa das feiras livrescas de Porto Alegre, Caxias do Sul e Santa Maria, eventos em que a livraria encontra outro tipo de público: “tenho clientes que só vejo em feiras do livro, e que compram sempre naquelas semanas do ano”. No entanto, sempre há quem surpreenda o livreiro com pedidos insólitos: “qualquer livreiro poderia escrever um livro de causos, reunindo só as histórias que ouve no cotidiano”.

Ele conta a história do cliente que entrou na livraria disposto a comprar a melhor tradução possível de “Martín Fierro” (clássico do poeta argentino José Hernández) – mas vertida para o espanhol. Miguel, para não perder o negócio, alcançou a edição original: “esta é a melhor de todas. Foi feita pelo próprio autor”. O homem folheou com atenção para comprovar que, de fato, o livro não estaria escrito em português. Convenceu-se de estar com a tradução que queria, mas não evitou a decepção: perguntou a Miguel por que naquela edição o texto todo estava escrito em versos. “Pois é, ele tem este defeito”, resignou-se o livreiro.

A Calle Corrientes também conta com clientes constantes, que regularmente encomendam livros em espanhol. A frequência das viagens a Buenos Aires e Montevidéu, de onde surgem a maior parte dos livros do local, depende das variações do câmbio, das condições do mercado editorial e da demanda que chega ao livreiro. Neste mês de maio, Miguel permaneceu no Rio Grande do Sul, acompanhando a Argentina de longe. Pelo noticiário esportivo que atravessa o sul, deve ter ficado sabendo que, na última sexta-feira, o seu Racing Club perdeu para o Quilmes, e que a parcela azul de Avellaneda nem lamentou. É que, com o resultado, o rival Independiente fica mais próximo do rebaixamento.

Extraído do sítio Sul21

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.